Eu não sei dizer, com certeza ou precisão, porque decidi comprar e começar a leitura desse livro. A verdade é que, a primeira vez que vi essa capa amarela (admito, tenho uma queda por capas amarelas) com uma menina se destacando ao centro, foi durante uma das minhas diversas expedições ao mundo das livrarias.Esse livro estava em destaque na prateleira, acredito que fazia parte dos lançamentos do mês, ou quem sabe, estava vendendo muito bem. Mas não foi isso que chamou a minha atenção. O que me fez querer conhecer essa história desconhecida, uma história que eu nunca tinha sequer ouvido falar, foi o seu título e as diversas possibilidades que o título proporcionava.

Depois que já tinha um exemplar para chamar de meu, eu decidi que não pesquisaria, ouviria ou leria nada que estivesse relacionado ao livro. Ele deveria permanecer misterioso até o momento em que eu iniciasse a leitura. Quando terminei de ler a última página dessa história, fui surpreendida positivamente, fui agraciada com algo maravilhoso, porém terrível. Terminei a leitura me sentindo como Pandora, que libertou todos os males ao mundo, mas que não pode conter a curiosidade. Eu era Pandora, e havia libertado uma história cruel, porém puramente bela e magnífica.

O nome dela é Melanie. Significa “a menina escura”, de uma palavra em grego antigo, mas sua pele na realidade é muito clara, então ela acha que talvez este não seja um bom nome.

A Menina que Tinha Dons aborda um tema muito conhecido pelos apaixonados por monstros, ficção e terror. O livro nada mais é do que uma história muito bem escrita e montada sobre infectados (ou, se preferir, zumbis). Neste livro nós seremos apresentados aos famintos, pessoas contaminadas por um fungo mortal que originalmente infectava formigas (o fungo é real, e já foi usado como inspiração para o jogo Last of Us). Nesta história, o fungo deu um enorme salto na cadeia alimentar e conseguiu realizar a proeza de ser capaz de infectar humanos.Uma vez dentro do corpo humano, ele dirige sua atenção para o cérebro e, uma vez instalado, vai se alimentando da massa encefálica humana até alcançar sua maturidade, porém, enquanto essa maturidade não é alcançada, ele controla o infectado para que este contamine outras pessoas ou se alimente de carne e sangue humano. Se trata, basicamente, daquilo que estamos acostumados a ver em filmes e jogos de zumbis, porém, o que ganha o leitor é a história presente no livro, é o que acontece nesse mundo dominado pelo caos e desespero que nos fisga logo na primeira página.

A história do livro nos direciona para uma base militar de pesquisas científicas, localizada na Inglaterra (em algum lugar com uma distância segura de Londres e Beacon), e montada para tentar descobrir uma cura para a epidemia que assola o mundo inteiro. Nesta base, dentro de uma construção localizada no subsolo, vive a pequena Melanie, uma garotinha de dez anos que foi levada para servir de cobaia por ser parcialmente imune ao fungo. Melanie não sabe que é infectada, ela não entende porque todos os dias deve ser amarrada em uma cadeira de rodas, porque os soldados apontam uma arma para sua cabeça, porque ela e as outras crianças aparentam ser tão perigosas para os soldados e professores da base. Mas a menininha é extremamente inteligente e, em meio ao pouco que consegue ouvir da conversa dos adultos, ela é capaz de compreender algumas coisas importantes a respeito de todas as pessoas que possuem algum tipo de contato com ela.

A infecção ainda se disseminava e o capitalismo global ainda se destroçava – como os dois gigantes se devorando na pintura de Dalí intitulada Canibalismo de outono.

Todos os dias, com exceção dos sábados e domingos, as crianças são amarradas e levadas para uma sala de aula onde professores ensinam diversas matérias, ou cientistas fazem testes e perguntas para as crianças. Dentre os professores que lhes ensinam todo o tipo de coisas, sua professora preferida é Helen Justineau, uma mulher calma e atenciosa, que aos poucos cria um enorme carinho por Melanie. Esse carinho se transforma em cuidado e proteção quando Melanie é levada para o laboratório da Doutora Caldwell, responsável pela base, pesquisas e pelas cobaias, é ela quem escolhe as crianças que quer dissecar e analisar. Durante uma bela tarde, a Doutora se prepara para, desculpem os mais impressionáveis, abrir o cérebro da garotinha e desvendar os mistérios que a impedem de chegar à cura para a infecção causada pelo fungo.Porém, tudo irá mudar quando um ataque à base frustra os planos de Caldwell, além de obrigar a formação de um grupo estranho, composto por uma criança faminta que nunca viu o mundo, uma cientista frustrada, uma professora de infectados e dois soldados. Juntos eles serão lançados ao caos em que se encontra o mundo, buscarão pela sobrevivência em meio a uma jornada suicida, e enfrentarão um caminho sem esperanças onde tudo que se espera é fugir da realidade.

A Menina que Tinha Dons é um livro maravilhoso que aborda muito mais do que um mundo dominado por zumbis. Através da narrativa em terceira pessoa nós somos capazes de observar o que se passa na mente de cada membro do grupo de sobreviventes. Conhecemos os medos e as expectativas dessas pessoas, compreendemos porque agem como agem e descobrimos, de um jeito ou de outro, como é possível que, mesmo não concordando com as ações de certos personagens elas ainda são justificáveis aos nossos olhos. Porém, o mais interessante de todo o livro, na minha opinião, é que aqui nós podemos observar o mundo através dos olhos de uma garotinha faminta de dez anos. De todos os personagens apresentados nessa história, ela é sem sombra de duvidas, a mais interessante e cativante.
É graças a pequena Melanie que percebemos o quanto as ações dos adultos são justificáveis e muitas vezes louváveis. Através das ações e pensamentos da inteligente criança nós descobrimos que sempre existe esperança, mesmo nas situações mais difíceis e complicadas ainda é possível encontrar uma saída. É verdade que nem sempre a saída, a esperança para o mundo, é bela, cheia de flores e unicórnios, mas se ela existe deve ser agarrada.

Está em território desconhecido e teme o futuro vago e inescrutável em que a precipitam antes que esteja pronta. Ela quer que seu futuro seja como o passado, mas sabe que não será.

Outro elemento maravilhoso presente nesse livro, é toda a pesquisa realizada para que a história tivesse força e veracidade. O autor se saiu muito bem ao interligar elementos reais e verdadeiros com a ficção. A própria presença do fungo que contamina formigas comprova que o autor pretendia criar uma história fictícia, porém com possibilidades reais de existirem. Ao longo da leitura o leitor não possuí outra alternativa, senão confiar na capacidade do autor em nos deixar levar, em nos surpreender e encantar.  

M. R. Carey queria que sua história fosse palpável, possuísse justificativas e conseguiu. Aqui nós observamos de perto o que o colapso causou à sociedade como um todo, descobrimos que, apesar de civilizados, o ser humano nem sempre responderá as expectativas e nem sempre fará o que se espera dele. Receberemos justificativas muito bem embasadas ao longo de toda a história, nada do que acontece nesse livro é impossível de imaginar na vida real.
E temos também o final. Não se preocupem, não soltarei nenhum spoiler. Mas o que eu preciso dizer é que a ligação que o autor fez com a Caixa de Pandora foi magnífica, surpreendente e me deixou sem palavras. É o típico final que chega sem avisar, que nos surpreende e nos encanta. Eu sinceramente não esperava por isso, estava apostando em uma hipótese muito mais trágica e triste, mas quando me deparei com o poder e a mensagem deste desfecho, fiquei feliz por ver que estava totalmente errada.
A Menina que Tinha Dons é um livro sensível, porém cruel, é cheio de esperanças, porém também contém grandes doses de tristeza e desespero. Este é o típico livro que não agradará a todos, não despertará o interesse em vários leitores, mas garanto que se arriscarem e apostarem na história dessa querida garotinha, vocês não irão se desapontar. O autor conseguiu me passar sua mensagem, e agora eu me sinto no dever de passar essa história adiante!

Ela desenha na lateral do tanque a letra A maiúscula e outra minúscula. Os mitos gregos e as equações quadráticas virão depois.

  • The Girl With All The Gifts
  • Autor: M. R. Carey
  • Tradução: Ryta Vinagre
  • Ano: 2014
  • Editora: Fábrica 231
  • Páginas: 384
  • Amazon

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