Marcos DeBrito estreou como escritor com o livro A Sombra da Lua em 2013, que até concorreu ao prêmio Jabuti de melhor romance, em 2015 foi muito bem falado com seu livro Condado Macabro e agora, com O Escravo de Capela, mostra mais uma vez o seu dom para criar histórias magnificas e aterrorizantes.As lendas brasileiras estão mais ligadas à literatura infantil ou no máximo à infanto-juvenil, com O Escravo de Capela, o autor as traz para o terror, torna o Saci e a Mula Sem Cabeça assuntos de gente adulta, corajosa e com o estomago forte para aguentar todas cenas dessa caçada lendária.
O Escravo de Capela conta a história de uma família completamente masculina, apenas com o pai e dois filhos, a mãe os abandonou fugindo da família ainda quando o filho caçula era bem pequeno. O filho mais velho e o pai são extremamente brutais com o tratamento de seus escravos, obrigando-os a trabalhar desumanamente na plantação de cana de açúcar, o filho mais novo, que está no Brasil apenas esperando um papel que o fará voltar em definitivo para a Europa, onde estuda há alguns anos, mais especificamente em Portugal, é o oposto dos dois, doce, culto e humano.
O saco cobrindo sua face, como um gorro avermelhado que deixava apenas a boca escancarada à mostra, e a bermuda maculada de sangue ressecado eram a confirmação do impossível. Sabola voltava dos mortos.
Inclusive, o primeiro ponto positivo que notei na escrita de Marcos está diretamente ligado a Inácio, o filho que morava em Portugal, suas falas são carregadas de sotaque português, além de suas palavras serem muito mais requintadas. O autor consegue passar exatamente a sensação de o leitor estar ouvindo alguém que há tempos não vem ao Brasil, o contrário ocorre com seu irmão e seu pai, que por viverem no campo e são muito mais duras e apresentam gírias e trejeitos brasileiros de se comunicar.
Um dos escravos, cansado dos maus tratos de Batista, o dono da fazenda, e Antônio, filho mais velho, tenta fugir de seus donos, acaba assassinado depois de ser recuperado, mas seu espírito volta, em forma do lendário Saci. Esta é apenas uma das cenas de assassinato brutalmente descritas na obra, a riqueza de detalhes e a maneira como o narrador descreve os ambientes e cada um dos envolvidos e seus movimentos que acontecem durante os crimes é perfeita, rica em detalhes, em muitos casos mais de um personagem estão “contracenando” e o escritor consegue passar ao leitor a emoção e a ação praticada por cada um, sem deixar lacunas nem esquecer de alguém.
As cenas se passam basicamente em dois ambientes, a plantação de cana da fazenda e a casa grande. Algumas outras fogem desses ambientes, parando na senzala, mas apenas esses três lugares aparecem no livro, o que na minha opinião é pouco, o autor poderia ter descrito muito melhor a cidade daquela época e locais como armazéns ou o centro onde acontecia o comércio. Claro que, nada que deixe o livro menos interessante, alguns leitores podem até se agradar mais com esse modelo, pois a história fica muito mais fechada, sem enrolação e com poucos envolvidos, porém eu já prefiro conhecer mais da história como um todo, com informações sobre o país e a cultura daquela época.
Inácio por ter parte de sua formação adquirida na Europa é bem mais culto e se indigna com a maneira que Batista e Antônio tratam as pessoas, ele acaba se envolvendo emocionalmente com uma das mucamas da fazenda, uma história que norteia grande parte do livro, fazendo uma narrativa de extremo terror ter muitos momentos de romance explicito, o que não é muito comum, por muitas vezes quem gosta de um dos gêneros não se envolve bem com o outro. Achei uma atitude ousada do escritor e meio perigosa, em alguns momentos o romance se sobressai aos outros motes da história, fazendo o livro ser bem “emotivo”.
Além do terror, do histórico sobre a escravidão e do romance, o livro ainda traz a recorrente disputa entre o filho malvado e autoritário contra o culto e bonzinho, com algumas características clichês, como por exemplo, o malvado ter medo do irmão tomar a fazenda que ele cuidou durante todo o tempo que o outro esteve longe da família. Esse para mim foi o ponto mais fraco do livro, porém o escritor consegue dar um ar extremamente forte e incisivo nisso utilizando a sua escrita, tornando a maneira como descreve as situações ligadas a isso menos comuns e fazendo a história não ser prejudicada por essa parte já manjada.
O Escravo de Capela é um livro com muito sangue, acredito que por causa das mortes infindáveis as bordas de suas páginas sejam vermelhas, tamanho o sangue que escorre delas, uma releitura original e surpreendente de lendas tão antigas. Você com certeza nunca viu nada parecido relacionado ao Saci e a Mula Sem Cabeça, a leitura é fácil, apesar de bem pesada, a ação é constante e o romance bem implícito, é a primeira leitura que faço desse autor, então não consigo tirar uma conclusão sobre ele envolver tanto romance em seus livro, talvez faça parte da sua maneira de escrever e permeie suas demais obras também, mas neste posso dizer que ficou bem colocada, talvez no limite para não prejudicar a leitura para quem não gosta muito de romantizar livros aterrorizantes.
Quanto ao exemplar do livro, as bordas de página são pintadas, uma coisa já comum nos livros lançados pela Faro Editorial e que o deixa muito bonito, as folhas são grossas impedindo que as letras da página seguinte reflitam na que você está lendo, uma coisa que me incomoda muito em algumas edições e que neste livro está perfeita.
Em suma, o livro é um ótimo terror, cheio de assassinatos, dramas e romance, quem gosta de mortes descritas de uma maneira muito convincente e aterrorizante irá adorar. Além de fazer lendas brasileiras terem novas explicações para o seu surgimento, a leitura vale a pena para saber como se transforma a lenda e a maneira como estes personagens do nosso folclore podem amaldiçoar o ambiente e as pessoas passando de ícones infantis para símbolos aterrorizantes.