Existem histórias que guardamos nos cantos mais sombrios de nossas mentes. Histórias reais, de tristezas, perdas, decepções, traumas ou fantasmas que ainda nos assombram durante a noite e, por mais que estejam escondidas dos olhares observadores e analistas de pessoas de fora, acabaram por nos transformar naquilo que somos hoje.
O mundo, em sua essência mais humana, é formado por histórias que se cruzam, que se findam com o início de outras, que se conectam entre si e permitem que novos acontecimentos se anexem a vida e lembranças de cada um de nós. Mas, é através de histórias de desconhecidos, de pedestres que andam pelas ruas, de adolescentes perdidos ou de bebês separados de suas mães, que percebemos a complexidade da vida e destas histórias que insistimos em esconder.
Heidi, ao contrário da grande maioria dos moradores de Chicago, faz o possível para ser a diferença na vida de pessoas em estado de necessidade, carentes de elementos básicos para a vida humana. Através de sua ONG, ela auxilia crianças, jovens e adultos carentes, fazendo o possível para que, mesmo com pequenas ações, suas vidas se alterem. O coração bondoso de Heidi, sua necessidade de ajudar, os traumas que guarda consigo e evita comentar até mesmo com seu marido Chris, fazem com que, durante uma noite chuvosa, enquanto pessoas saem de um trem para outro, enquanto o ritmo frenético do fim de tarde cega olhos cansados, é Heidi quem percebe uma adolescente perdida, carregando uma adorável bebê.
Sorrir não é algo que a garota faça naturalmente. Eu a comparo com Zoe e sei que é mais velha. O desespero em seus olhos, por um lado, a falta da vulnerabilidade evidente de Zoe, por outro. E claro, há a bebê.
Coincidências acontecem. Os caminhos das três personagens acabam por cruzar-se em diversos pontos da cidade e, a cada encontro inesperado, maior se torna a vontade de ajudar, de fazer a diferença na vida daquelas pobres criaturas. É através do último reencontro, durante uma noite fria, que Heidi convida Willow, a adolescente insegura e calada, e Ruby, a graciosa bebê, para o calor e aconchego de sua casa. O que não passou pela mente de Heidi no momento em que acolhe essas duas crianças, é o fato de que desconhecidos carregam consigo histórias não contadas, traumas e segredos desconhecidos, e são esses os elementos que podem mudar o rumo de suas vidas para sempre.
A Desconhecida se constrói através da exploração de três perspectivas diferentes, da visão e segredos de três personagens que, mesmo que a princípio desconectados, interligam-se em uma trama onde cada novo capítulo traz consigo uma nova informação, destaca uma nova face de cada personagem e permite a visão ampla da história como uma única trajetória.
Apesar de possuir uma premissa interessante, até mesmo instigante, a narrativa apresentada por Mary Kubica possuí maior força quando observada através do prisma da conscientização e pesquisa realizada para a contextualização de uma história de suspense. Aqui a autora apresenta com detalhamento e tato as necessidades, dores e obstáculos enfrentados por pessoas carentes, por sem-teto, por todos aqueles que, durante nossas rotinas corridas, insistimos em virar o rosto e fingir que não estão lá. A realidade transborda pelas páginas desse livro. Aqui percebemos as marcas deixadas pela perda de pais, de filhos, de famílias que nunca deveriam desaparecer. Aqui observamos as cicatrizes de anos de abuso, de segregação, de dúvidas e sombras que ofuscavam nossa visão. Aqui entramos em contato com a realidade vivida por milhares de pessoas ao redor do mundo e, aqui, não somos capazes de virar o rosto para o outro lado.
O ponto fraco da obra, por outro lado, está justamente no gênero em que se delimita. A trama criada pela autora se interliga, os fatos se conectam para garantir o desfecho da obra, porém, a escolha, as motivações e características escolhidas para garantir o desfecho decepcionam por tamanha conveniência. Foi muito fácil finalizar a obra, foi muito fácil fechar todas as pontas soltas com um detalhe utilizado tantas outras vezes e que fazem com que toda a realidade do livro se perca por conta de uma estratégia que, em casos como esse, mais atrapalham uma obra em potencial.
A Desconhecida possuí uma trama bem estruturada com uma estratégia de desfecho convencional e mal trabalhado, porém, é na realidade belamente abordada na obra que senti a força da autora. Muito mais do que um suspense para nos fazer passar o tempo, A Desconhecida apresenta conscientização, dramas verdadeiros, vividos por pessoas e pessoas ao redor do mundo, e uma quantidade inimaginável de elementos reais garantindo dimensão e profundidade para uma obra que, caso contrário, seria apenas mais uma dentre tantas outras.
- Pretty Baby
- Autor: Mary Kubica
- Tradução: Fal Azevedo
- Ano: 2017
- Editora: Planeta de Livros
- Páginas: 352
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