Seria possível detectar as nuances encontradas na diversidade de indivíduos que compõem uma sociedade e, através de uma análise profunda, perceber aqueles cujas ações culminariam em atos de crueldade? Nascemos com a maldade em nossa essência ou seriam os eventos vivenciados, as trajetórias de nossas vidas que levam a agirmos de maneira desprezível? Não seria o ser humano, em toda sua diversidade e peculiaridade, capaz de decidir acerca de suas próprias tomadas de decisões?
Aconteceu em uma noite escura. Um garoto de oito anos é amarrado no centro da sala de estar daquela residência que um dia chamou de lar. Ele é forçado a assistir de olhos abertos o assassinato de seu pai e mãe, aqueles que o amaram e buscaram proteger. O assassinato é cometido com requintes de crueldade. A língua do pai é cortada e o mesmo é amordaçado de maneira a engasgar-se com o próprio sangue. A mãe, por motivos incertos, recebe misericórdia, levando um tiro na cabeça e falecendo logo em seguida.
O garoto é abandonado na cena do crime, vivo, em choque, livre para seguir com os anos que lhe restam e ser assombrado pelo passado. A falta de tratamento necessário, sua possível tendência para o mal, talvez a falta de uma compreensão acerca da ética, que deveria ser construída ao longo de seu crescimento, levam David, a, anos mais tarde, cometer exatamente o mesmo crime, utilizando as mesmas características, as mesmas armas, porém, com motivações de cunho “científico”.
Basta a vida tocar no lugar certo para despertar o pior em qualquer pessoa.
David entra em contato com William, um psicólogo promissor especializado no tratamento de crianças, cuja tese de doutorado apresentava uma teoria – e trata-se apenas de uma teoria – que aborda as consequências de eventos traumáticos no crescimento e amadurecimento das crianças que os vivenciaram. William sempre se sentiu na obrigação de contribuir ao máximo para com a sociedade, e, mesmo anos após ter publicado sua tese continua questionando-se acerca das verdades de sua teoria nunca comprovada. Ele acaba aceitando a proposta de David, que irá responsabilizar-se pelo assassinato de cinco pais e mães, provenientes de classes sociais, culturas e regiões diferentes, porém próximos entre si, deixando para trás apenas um sobrevivente, uma criança de oito anos.
Por meio dos assassinatos, William entraria em contato com as crianças sendo capaz de analisar e observar seus traumas, vindo a compreender as consequências de um evento trágico como esse na vida, crescimento e amadurecimento destas crianças. Uma vez que os assassinatos têm início, um novo peso é posto na balança. O investigador de homicídios Artur, cuja mente afiada, olhar objetivo e peculiaridades serão posicionados nos caminhos que cruzam com os de William e David, deverá descobrir os segredos por trás da destruição de famílias, dos traumas afligidos sob crianças pelas mãos de um monstro ainda em liberdade, e também, de um possível experimento que se desenvolve sob seu olhar aguçado.
O Sorriso da Hiena constrói-se de maneira a espelhar a realidade em uma narrativa fictícia. Aqui encontramos eventos possíveis, situações que embora ainda não tenham ocorrido no mundo real, poderiam ver a acontecer com uma facilidade assustadora. A narrativa avança com um ritmo instigante, vindo a apresentar ao leitor a caçada de um policial correto e justo por um assassino serial, da mesma forma, apresenta com ótimo detalhamento os avanços do assassino e as escolhas que fez ao selecionar suas vítimas. Quando observada através de suas características de suspense
policial, o livro prende o leitor do início ao fim, firmando-se muito mais na empreitada de um policial em busca de descobrir o rosto por trás da máscara de assassino, do que das reflexões que se propõem a levantar.
Por me interessar profundamente pela temática apresentada nesta obra, estar familiarizada com as reflexões propostas, e, por tratar-se de uma obra cuja lógica e desenvolvimento baseia-se naquilo que encontramos em nosso mundo, na realidade de nossas vivências, me vi frustrada com pequenos detalhes e a falta de profundidade e abordagem do debate aqui presente. Detalhes como o fato de um doutor em psicologia propor-se a concretizar um estudo com apenas cinco exemplares me incomodaram. Elementos como, além de contentar-se com apenas cinco exemplares para análise, o doutor em psicologia ignora o fato de que, a cada nova pesquisa divulgada, a ciência confirma que cada indivíduo se desenvolve de forma única, e as funções e conexões cerebrais não serão iguais a de nenhum outro indivíduo embora possuam semelhanças, faria com que o psicologo lançasse mão de uma estratégia diferente, o que não ocorre. A própria experiência vivida pelo personagem demonstram que, e ninguém compreende como ninguém percebeu, esteve possivelmente sempre alheio a uma ética para com a sociedade e aqueles que lhe eram mais próximos.
O que encontramos ao longo do desenvolvimento de O Sorriso da Hiena pode muito bem classificar-se – embora não tenha conhecimento se o autor teve ou não esse objetivo – como a pura banalidade do mal abordada por
Hannah Arendt.
Gustavo Ávila, e aqui inicio minhas próprias reflexões e críticas com relação a obra, destaca a banalização do mal por meio de um indivíduo que nunca enfrentou metade dos desafios vividos por pessoas e pessoas ao redor do mundo. O mesmo destaca-se por seu acesso a cultura, por possuir formação superior, tendo passado inclusive por um doutorado, e, assim iniciam-se minhas indagações: como um doutor em psicologia com uma ética falha nunca foi detectado? Como um psicólogo, que eventualmente tratava-se com outro psicólogo, nunca foi diagnosticado pelos graves problemas mentais que possuía? Como um psicólogo, noivo de uma psicóloga, que eventualmente fazia sessões de terapia, foi capaz de passar despercebido por tanto tempo?
Talvez o maior debate proposto pela obra volta-se para a total e escancarada falta de ética. Aqui encontramos um psicólogo movido por egoísmo, pelo sentimento (falso) de contribuição para com a sociedade.
É possível justificar o mal quando há a intenção de fazer o bem? Não. Pois – peço desculpas a todos aqueles que não perceberam, mas para mim está claro – o bem que se acredita fazer não passa de uma ilusão criada pela mente egoísta de um ser humano que contou a si mesmo que seu estudo, realizado com cinco exemplos, baseado no assassinato de pais e mães, que ignora os avanços do conhecimento científico neurológico, cognitivo e psicológico, e, por fim, destrói a família de crianças indefesas mostra apenas a falta de ética do indivíduo e sua deturpação da realidade.
O Sorriso da Hiena me ganhou por seus detalhes e desenvolvimento com relação ao gênero policial. Porém, são as reflexões não aprofundadas, o debate fértil e interessantíssimo que percebi, mas, que não sei dizer até onde é capaz de chegar – até onde é Izabel pensando e até onde outros leitores poderão pensar a respeito – que me frustou ao longo da leitura. Não tiro o mérito do autor, muito menos ignoro seu talento e coragem para escrever sobre um tema tão complexo, e é verdade que a leitura é válida, mas, após ler obras como Senhor das Moscas, Precisamos Falar sobre o Kevin, e Laranja Mecânica, seria difícil deixar de lado não apenas essas leituras, mas tudo aquilo que sei hoje e que mudam totalmente minha percepção da obra.
- O Sorriso da Hiena
- Autor: Gustavo Ávila
- Ano: 2017
- Editora: Verus
- Páginas: 261
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