É incrível como os quadrinhos tem me surpreendido cada vez mais. Há alguns anos, eu diria que este universo não me agradaria tanto quanto o dos livros, mas hoje, mordo a língua só de pensar em tal pensamento. Diferentemente de um livro, uma graphic novel utiliza do recurso visual, transmitindo, às vezes, em apenas uma imagem a mesma emoção que um par de parágrafos poderiam proporcionar. Esta graphic novel não faz isso em apenas uma imagem, mas sim em todas e emocionará todo o leitor que se aventurar por esta história.
Em O Melhor Que Podíamos Fazer acompanharemos a história da família da autora, Thi Bui. Uma autobiografia contada de forma não linear, em pequenos fragmentos existentes no passado e no presente nas vidas de quem ainda enxerga marcas de uma guerra. Através de seus traços expressivos, sua paleta alaranjada e uma narrativa até poética, Thi Bui registra a fuga da sua família após a Guerra da Indochina, no Vietnã Sul. O cenário é no início dos anos 70 e aqui acompanhamos todas as dificuldades e desafios que Má, Nan e seus seis filhos tiveram que passar em busca da liberdade e de uma vida melhor, e muito mais que isso, também vai trazer o relato de uma filha em busca por compreensão em relação aos pais e todas as angustias e marcas que o passado deixou.
O relato de Thi Bui inicia em 2005, no momento que entra em trabalho de parto. Naquele momento, tratada como algo e sem a menor ternura, Thi sente uma verdadeira empatia pela mãe, que já havia passada por situações muito piores em sua vida, mas que estava ali para apoia-la. É este pequeno “grande” detalhe que muda a perspectiva de Thi Bui em relação a sua criação, o nascimento do filho e o surgimento de sua própria família. Entender tudo pelo qual seus pais passaram, ajudou Thi a compreender as fraquezas da mãe e o tratamento frio de seu pai.
Agora família é algo que criei e não algo em que nasci.
A percepção de Thi Bui sobre o seu aprendizado, as lições que vem tirou de toda a jornada de sua família e o modo que enxerga tudo com outros olhos depois de mãe, rende ao leitor uma das reflexões mais emocionantes na minha opinião. A passagem em que Thi Bui enxerga sua mãe, realmente como ela é, em vez da forma como ela gostaria que fosse e a forma como ela, já madura, começa a dar valor a todos os pequenos gestos e todos os grandes sacrifícios que foram feitos por seus pais, todas as escolhas e atitudes que eles tomaram em prol dos filhos. Todo este crescimento próprio, inspira para que nós passemos a dar valor aos nossos pequenos momentos finitos, nosso tempo com a família, o aprendizado que herdamos de nossos pais.
Esta é uma graphic novel que cai como uma luva, numa época onde ainda existe a crise de refugiados na Síria e a de que o líder de uma das maiores potências do mundo deseja fechar as portas para imigrantes. Talvez, na segurança de nossos lares, ainda que em meio ao caos que é nosso pais, não encontremos tempo para pensarmos em pessoas que vivem e sobrevivem em condições mais precárias e mais desumanas que nós. Pessoas que não tem a oportunidade nem de sonhar por viverem em lugares cheios de privações, amarras e controle. Sem dúvidas, esta é uma reflexão para se levar para a vida.
Ao longo da narrativa iremos acompanhar também fatos marcantes da Guerra do Vietnã, fatos históricos que acompanham a família de Thi Bui. Alguns relatos revelam um outro lado da história e como a mídia americana, que de certa forma, acabou manipulando muito a verdade por trás dos fatos. Um, em particular, me chamou bastante a atenção, foi a divulgação de uma foto, veiculada pelo mundo como a Execução em Saigon, nela aparece um oficial vietnamita, prestes a atirar em um vietcongue, membro do exército do lado norte do país, porém, o que o mundo não sabia era que este mesmo homem havia assassinado uma família inteira poucas horas antes.
O Melhor Que Podíamos Fazer é um trabalho que demorou dez anos para ser concluído e publicado, pois Thi precisou entrevistar seus pais inúmeras vezes e as lembranças nem sempre eram bem-vindas. Mas pelo que vemos Thi Bui soube guiar o leitor por sua narrativa, nos transportando entre suas memorias, lembranças e consciência no presente em que o livro fora criado. É sua obra de arte de estreia como quadrinista, mas digna para uma história tão tocante, cruel e sensível ao mesmo tempo.
Acompanhar a história de Thi Bui, que é apenas uma em milhares, me fez pensar em quanto somos ingratos pelo que possuímos, talvez, agora após esta leitura, eu me sinta mais motivada a outras coisas, com certeza foi o tipo de leitura que me modificou um pouquinho mais, que me engradeceu e certamente marcou minha jornada como leitora. Acompanhar seu sofrimento, angustias e suas preocupações fizeram de mim uma pessoa melhor e eu só tenho que agradecer por Thi Bui ter decidido compartilhar a sua história.
Sem dúvidas, esta é uma história inspiradora, um feixe de luz para aqueles que ainda buscam paz e a certeza de futuro melhor sem privações. A história de pais que conseguiram se reerguer para construir uma nova vida na América, que além de ensinaram aos filhos o significado do respeito e a importância de cuidarem sempre uns dos outros, também ditaram lições que os acompanhariam sempre, reflexos de uma vida de luta pela sobrevivência. O Melhor Que Podíamos Fazer traz o relato de uma família, traz e revela um emaranhado de significados e sentimentos, mas que percorrem o mesmo e singelo caminho, os aprendizados que levamos e desejamos para nossos filhos.
- The Best We Could Do
- Autor: Thi Bui
- Tradução: Fernando Scheibe
- Ano: 2017
- Editora: Nemo
- Páginas: 330
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