O universo de Ada sempre esteve delimitado pelo espaço existente entre as quatro paredes do apartamento que dividia com a mãe e seu irmãozinho Jamie. Os pequenos fragmentos do mundo, observados através da única janela do apartamento, eram sua única maneira de reconhecer os elementos que compunham a realidade e normalidade tão preciosas aqueles cuja liberdade possibilitava a realização do transgressor ato de deixar para trás os limites da própria casa.
Enquanto Jamie brincava e conhecia toda a vizinhança do bairro onde moravam, descobrindo uma nova aventura todos os dias, Ada lutava contra as dores e dificuldades impostas por seu pé torto. Muito mais do que enfrentar o árduo desafio de caminhar, a garota sofria com as agressões físicas e psicológicas de sua própria mãe. Um grande capítulo de sua vida foi marcado pela crença de que seu pé não poderia ser alterado, seus pensamentos e sentimentos não possuíam valor, seu mundo deveria estar limitado ao espaço daquele pequeno apartamento.
Quando a guerra – esta fria e cruel inimiga da crença na existência intrínseca de esperança e bondade na humanidade – aproxima-se dos arredores de Londres, forçando a transferência do maior número possível de crianças para áreas rurais, Ada descobre os mais diversos elementos da vida que lhe foi negada. A convivência com Susan, agora sua guardiã legal, permite que a menina desenvolva um sentimento que nunca foi capaz de sentir por completo, possibilita que enfrente seus maiores medos e traumas, reconheça seus defeitos e aprenda a superá-los, ou mesmo, conviver com eles.
Se eu começar a tirar coisas do coração […] se eu conversar com você, se for apanhar as fotografias… eu vou desmoronar. Não vou conseguir aguentar viver aqui. Não vou ser capaz de aprender o que preciso aprender para ajudar a minha família. Se eu me abrir, vou me desmantelar.
Enquanto Ada, após passar pela cirurgia de reversão para seu antigo pé torto, descobre que este nunca foi verdadeiramente o problema, vindo a enfrentar o medo da rejeição, a imagem que sua mãe auxiliou a construir de si mesma, estabelecendo a crença de que a menina nunca seria amada, a guerra contra o regime nazista assola toda a Europa. Casas são bombardeadas, famílias são realocadas, as crianças descobrem o significado de racionamento, conhecem a perda e o luto, percebem que existem mais características por trás das visões que criamos de cada pessoa que convive conosco e, assim, em meio ao contexto deste dramático período da história humana, Kimberly Bradley nos ensina sobre a própria humanidade.
Existe algo de mágico no olhar de uma criança, na profundidade de seus sentimentos, em sua maneira única e peculiar de aprender lições sobre si mesma e o mundo e, uma vez mais, a autora demonstra compreender muito bem cada um destes princípios. A escrita cativante, acessível e profundamente carregada de sentimentos une-se de forma graciosa à protagonista, destacando a essência do amor, aquele amor único e verdadeiro que não possuí barreiras, amor este que assusta por não exigir nada em troca, apenas a percepção de que o mesmo existe dentro de cada um de nós.
A criança também representa a flexibilidade, o pensamento que evoluí e recusa-se a fixar-se em ideias, pensamentos ou visões de mundo que, por meio de tantos exemplos e eventos, estão errados ou equivocados. Somente uma criança é capaz de moldar sua visão de mundo e perceber os profundos erros em nossa forma de viver e moldar o mundo, da mesma forma, somente uma criança seria capaz de estabelecer um verdadeiro sentimento de empatia com o leitor, possibilitando que este reconhece-se a humanidade que deveria existir em cada um de nós, assim como os erros que cometemos ou observamos serem cometidos, as consequências do preconceito e arrogância, a certeza de que a perda atinge cada um de nós da mesma forma, porém é o que fazemos com esse sentimento que define quem somos e seremos dali em diante.
A Guerra Que Me Ensinou a Viver consegue ser ainda mais profundo, tocante, adorável e repleto de mensagens do que seu predecessor A Guerra Que Salvou a Minha Vida. Assim como no primeiro livro, os eventos pertencentes ao período da Segunda Guerra Mundial fazem parte do contexto necessário para que o talento inegável de Kimberly Bradley possa desenvolver temas universais, apresentando ao leitor visões e mensagens sobre perda, luto, amor, superação e a certeza de que, em todos os lados possíveis, encontraremos aquela verdadeira essência da humanidade.
- The War I Finally Won
- Autor: Kimberly Bradley
- Tradução: Mariana Serpa
- Ano: 2018
- Editora: Darkside Books
- Páginas: 288
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