Jules Verne nasceu na bela cidade francesa de
Nantes, no ano de 1828, dez anos após a publicação do clássico
Frankenstein, ou o Prometeu Moderno, escrito pela icônica
Mary Shelley. A relevância desta cidade portuária reconhece-se, principalmente, por representar o ápice do comércio triangular da França. Ao longo de vários séculos, objetos variados, bem como tecidos estampados saíram dos portos de Nantes em direção ao oeste da África onde eram trocados por escravos que, por sua vez, seriam transportados para o oeste da Índia, onde tornavam-se moeda de troca por açúcar e outros produtos coloniais. O ciclo recomeçava quando o açúcar da Índia desembarcava nos portos de Nantes e os navios eram novamente carregados com objetos franceses.
Uma vez que a cidade de Nantes desfrutava de elevado status sócio econômico, recebendo navios carregados de objetos inusitados, sabores exóticos, indivíduos provenientes das mais diversas localidades que transportavam consigo os elementos e características das mais ricas culturas, oferece-se à mente curiosa de Jules Verne a oportunidade de perceber nuances e toda uma gama de inspiração. Sua cidade natal, embora não tenha sido a única, foi uma fonte inegável e inesgotável de inspiração para as obras que um dia viria a produzir. Contudo, ela também demonstra ao jovem Verne o poder destrutivo do homem, pois derrubou seculares olmos para construir linhas de trem, dizimando, também, belos prados para edificar grandes áreas industriais.
Em novembro de 1848, ele promete aos pais que sua mudança para a cidade de Paris iria destinar-se, única e exclusivamente, ao estudo da advocacia. Porém, a verdadeira essência deste jovem de vinte anos clamava pela criação e compartilhamento de histórias, levando-o a abandonar os estudos e iniciar o árduo processo de criação de narrativas capazes de instigar o olhar de editores dispostos a publicá-las. É neste período que a relação do autor com a cidade de Paris sofre profundo desgaste pois, além de encontrar-se desempregado, não possuir qualquer obra publicada e receber curto auxílio financeiro do pai, ele sofre com a fome e diversos problemas de saúde, vindo a acompanhar algumas revoltas que marcaram a história da cidade.
No ano de seu casamento, 1857, os desgastes proporcionados pela vida em Paris chegam ao fim e os recém casados decidem fixar residência em Nantes. Embora seu casamento tenha durado toda uma existência, Jules Verne é, reconhecidamente, um marido ausente. Além de distanciar-se da vida doméstica e criação dos filhos, admitindo não ser capaz de conectar-se com crianças pequenas, ele passou longos períodos longe da família em viagens marítimas, uma de suas maiores paixões.
Museu de Jules Verne em Nantes
Após anos lutando pela transformação de seus manuscritos em livros que poderiam ser manuseados por uma vasta gama de leitores, no ano de 1862 o autor finalmente firma seu primeiro contrato. Cinco Semanas em um Balão, seu primeiro livro, seria publicado em 1863, definindo, assim, a carreira do autor. A partir deste ponto reconhece-se em Verne um dos principais nomes quando pretende-se abordar a criação de “viagens extraordinárias” e romances geográficos.
As aventuras de seus personagens, muitas vezes iniciadas por meio de viagens que objetivam explorar territórios desconhecidos, desvendar os segredos da terra e do mar, ou mesmo realizar feitos nunca alcançados por seres humanos, caracterizam o termo “viagem extraordinária” pois, embora baseiem-se em elementos, informações e saberes pertencentes ao mundo real, expressam trajetórias nunca antes imaginadas pelos leitores. O romance geográfico, por sua vez, delimita trajetórias de personagens, aventuras ou eventos que, de alguma forma, descortinam novos territórios, ressaltam novos povos e culturas, lançam luz a outros pontos do mapa, caracterizando-se, portanto, pela necessidade de explorar e mapear áreas nunca antes vistas por olhos humanos.
No mesmo ano da publicação de Cinco Semanas em um Balão, Jules Verne encaminha outro manuscrito ao seu editor que nega qualquer chance de publicação do trabalho. Paris no Século XX, talvez a única distopia escrita pelo autor e exemplo de que o mesmo não se deixava encantar pelos “avanços” do conhecimento científico, seria publicada somente em 1994, muitos anos após a morte do querido escritor.
Divulgação da adaptação cinematográfica de 20 Mil Léguas Submarinas, produzida por Walt Disney.
Entre os anos de 1868 e 1869, Jules Verne produz aquela que viria a transformar-se em uma de suas obras preferidas. Escrita num período de forte inspiração criativa, Vinte Mil Léguas Submarinas é fruto do contato direto com a atmosfera marítima pois, muito mais do que remeter às viagens do autor, expressa o momento em que este usufruiu de uma espécie de “escritório sob as águas”. Todo o carinho, informações, conhecimento científico e inspiração depositados na produção desta narrativa culminam no grande sucesso que conquistou, sendo, até hoje, uma das obras mais conhecidas do autor.
Da mesma forma como direciona-se à figura do escritor a responsabilidade por consolidar o
romance geográfico e o formato das encantadoras
“viagens extraordinárias”, diversos autores, dentre eles a pesquisadora do MIT
Rosalind Williams, destacam que uma de suas características mais marcantes é a busca por compreender o conhecimento científico afim de inseri-lo em suas histórias. Destaca-se que o autor nunca perdia de vista o objetivo de transformar o complexo e vasto saber humano em algo atrativo para o leitor, permitindo que este, na mesma medida em que se percebe a realidade de contextos, encaminhe-se por uma aventura única e cativante. A responsabilidade e cuidado do autor ao inserir detalhes, informações e elementos da ciência e tecnologia em suas narrativas culminou, ainda, nas críticas direcionadas ao trabalho de
H.G. Wells que, para Verne, desenvolvia ficções sem qualquer base científica real e plausível.
No ano de 1905, tendo recebido a oportunidade de observar os primeiros eventos do misterioso século XX, Jules Verne lança ao mundo seu último suspiro. Suas obras, entretanto, transformaram-se em seu maior legado, conquistando leitores ao redor do mundo e firmando suas narrativas em meio aos clássicos da literatura.
Estátua em homenagem ao autor, localizada na Baía de Vigo, Espanha. Fotografia de Pedro Figueras
Para concluir este texto, considero pertinente ressaltar que, embora diversas editoras brasileiras orgulhem-se por publicar algumas das mais famosas histórias de Jules Verne, representadas pelos livros Viagem ao Centro da Terra; 20 Mil Léguas Submarinas; Volta ao Mundo em Oitenta Dias; 5 Semanas em um Balão (aparentemente descontinuado); A Ilha Misteriosa e, o infelizmente abandonado e deixado de lado, Paris no Século XX. O mercado editorial brasileiro e, consequentemente, os leitores brasileiros, desconhecem ou ignoram fantásticos exemplos como The Adventures of Captain Hatteras (publicado em 1864); The Carpathian Castle (publicado em 1892); Robur the Conqueror (publicado em 1886); Master of the World (publicado em 1904); Around the Moon (publicado em 1869); Propeller Island (publicado em 1895); Magellania (publicado em 1898); The Lighthouse at the End of the World (publicado em 1903). Enquanto estes exemplos permanecessem sem qualquer previsão de lançamento, ou mesmo de republicação no Brasil, algumas editoras importantes reduzem e modificam as narrativas do autor, oferecendo “clássicos light” aos leitores brasileiros.