Ragle Gumm levanta da cama todos os dias, desce os degraus da escada e direciona-se para a cozinha com o intuito de fazer um forte café preto. Em seguida, volta-se para a entrada da adorável residência que divide com a irmã, o cunhado e o filho do casal, localizada no subúrbio de uma pacata cidadezinha de um Estados Unidos de 1959. Após respirar o ar fresco da manhã ele pega o jornal do dia em suas mãos e volta para dentro, iniciando assim mais um dia de reflexões, análise de padrões, recolhimento de dados e preenchimento dos formulários correspondentes às respostas para o concurso do jornal, o qual é vencedor consecutivo desde que consegue se lembrar.
A rotina diária de Ragle Gumm poderia manter-se para sempre livre de grandes oscilações ou alterações, não fosse por uma sensação incômoda de que algo está acontecendo diante de seus olhos, porém, estes permanecem obscurecidos por uma fina camada de desconhecimento. Quando objetos reais insistem em desmaterializar-se, deixando para trás pequenos pedaços de papel com nada além de seu nome; no momento em que a opressão causada pelo sentimento de que, caso deixe de responder ao concurso do jornal, algo terrível irá acontecer; quando revistas são encontradas e ninguém parece conhecer os nomes dos filmes e atores famosos, este curioso personagem iniciará um processo sem volta de questionamento da própria realidade.

As pistas que estamos obtendo não nos dão uma solução, mas nos mostram o alcance dessa impressão de coisa errada.

Uma vez que a pacata cidade demonstra não possuir qualquer resposta para a infinidade de perguntas que se formam em sua mente, configurando-se em nada mais do que um beco sem saída, um caminho circular que o leva sempre para o mesmo lugar, Ragle une-se ao cunhado em uma aventura para além dos limites da cidade. Juntos, dirigindo pelas imensas e sempre retas rodovias em um caminhão roubado, os dois irão descobrir uma realidade muito mais sombria, confusa e complexa do que suas mentes alienadas jamais poderiam imaginar.
Philip K. Dick, clássico autor de ficção científica, reconhecido por obras como Androides Sonham com Ovelhas Elétricas e O Homem do Castelo Alto, além de uma quantidade considerável de reflexões filosóficas que comumente insere em suas obras, constrói aqui uma narrativa obscurecida pelo suspense e mistério da realidade. Trata-se de uma investigação em busca da verdade, da tentativa de conectar os mais diversos elementos e aspectos do mundo conhecido, do próprio conceito de realidade percebida, aquela que carrega em sua essência nossa visão de mundo, cultura, posição social e experiência.
Assim, capítulo após capítulo, recebemos informações, formulamos teorias, estabelecemos padrões e configuramos a realidade ao qual o personagem se insere, porém, a brincadeira e trunfo da obra começa quando cada teoria se prova errada e novas informações são acrescentadas, obrigando-nos a produzir novos padrões, cenários e contextos juntamente ao personagem.
A escrita instiga por meio de seus mistérios, da tentativa de compreender a verdadeira realidade, o contexto por trás de tantos eventos confusos e peculiares, contudo, a leitura fluida não deriva única e exclusivamente desta característica, mas também de sua acessibilidade, da forma gradativa com que eventos e contextos vão descortinando-se, apresentando, por fim, o que rege o mundo destes personagens.
Ao contrário de outros livros do autor, O Tempo Desconjuntado não explora grandes questões filosóficas, não promove profunda reflexão do leitor acerca de sua realidade, daquela que percebe, concebe e modifica dia após dia. As mensagens e pensamentos, definitivamente, serão divergentes de leitor para leitor, mas aí reside o trunfo da obra. Já que trabalha a realidade percebida, as conexões necessárias para se compor o contexto geral de uma realidade, a verdade por trás de informações, conhecimentos e eventos, cabe ao leitor decidir acerca de quais mensagens e valores irá retirar e levar consigo, uma vez que somente ele poderá expressar o que viu.

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Com mistérios que se desenvolvem e descortinam-se de maneira fluída, cativando e instigando o leitor a prosseguir com a leitura, a obra classifica-se como uma ficção científica acessível. Aqui a parte científica da ficção não exige do leitor compreensão aprofundada de conceitos ou teorias da física quântica, mas sim a conexão de elementos e aspectos da narrativa para percepção das diversas realidades possíveis. Uma obra para tomar-se gosto pelo gênero é como descreveria O Tempo Desconjuntado. Um livro acessível, cativante, peculiar e habilmente escrito pelas mãos de um dos mais importantes autores da ficção científica do século XX.

  • Time Out of Joint
  • Autor: Philip K. Dick
  • Tradução: Braulio Tavares
  • Ano: 2018
  • Editora: Suma
  • Páginas: 267
  • Amazon

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