Um dos pontos mais interessantes, que vale a pena observar no filme, é como Lee utiliza referências de outras produções cinematográficas para criticar a cultura racista norte-americana. No início, nós temos um trecho do filme “…E o Vento Levou” (1939), onde Scarllet O’Hara corre entre os corpos dos rebeldes da Guerra de Secessão enquanto a bandeira confederada flutua as farrapos à esquerda. Talvez uma forma poética e ao mesmo tempo satírica do diretor em tentar representar o “sofrimento” e as “perdas” que os sulistas tiveram ao perderem a guerra. Isso para logo depois ele colocar uma interpretação jocosa de Dr. Kennebrew (Alec Baldwin), líder segregacionista, com cenas de O Nascimento de um Nação (1915) – um filme altamente racista que retratava os afro-americanos como inferiores e selvagens, ao mesmo tempo em que colocava a Ku Klus Klan como uma força heroica. Os mais atentos também observarão que logo depois do corte da cena da bandeira flagelada, aparece a mesma bandeira pendurada atrás do Dr. Kennebrew. Provavelmente uma dica para que quem não sabe o que aquela bandeira significa e, assim, possa fazer uma ligação com o discurso que é feito depois. Ele ainda faz referência ao filme Tarzan (acredito que de 1959), onde os negros nativos eram espancados pelo Tarzan branco, incentivando a violência contra negros em uma época em que o fim da segregação racial nos Estados Unidos ainda era muito recente. O diretor ainda termina o filme trazendo cenas reais do confronto entre supremacistas brancos e grupos antirracismo. Puxar o expectador para realidade me pareceu uma forma de lembrar as pessoas que filmes não são apenas produtos de ficções e de entretenimento, todos eles (em maior ou menor grau) vem carregados de significados e ideologias dialogando com questões culturais.
A opção por relacionar cenas de filmes específicos, documentação fotográfica e videográfica real, bem como histórias, acontecimentos e pessoas interligadas a toda a problemática abordada demonstra que o longa não anseia somente por transmitir um trecho importantíssimo de um período histórico dos Estados Unidos ou da vida de Ron Stallworth, mas também demonstrar a interligação de cada evento, comentário, produção “artística” e ações individuais ao plano geral. Seu objetivo principal é ressaltar que o que observamos não limita-se ao passado mas estende-se aos dias atuais e é tão arraigado em pessoas, corporações e atitudes que por vezes nos sentimos assombrados pela realidade inegável que esta obra ficcional apresenta.
Em relação as atuações, eu confesso que fiquei surpresa de não ter visto John David Washington indicado na categoria de melhor ator. No entanto, Adam Driver, o seu parceiro que representa muito bem o policial veterano que já não se importa muito com as coisas (mas que no fundo todo mundo sabe que ele se importa sim), levou a indicação de melhor ator co-adjuvante. Só não conto muito que ele leve a estatueta para casa, porque ele ainda não chegou a ganhar em nenhuma das outras premiações a qual ele foi indicado. Por fim, vale comentar a trilha sonora do filme que também está impecável, envolvente e irônica. Ela conseguiu despertar os sentimentos certos dentro de mim em cada cena.
Em suma, seja pela magnífica e poderosa menção ao Linchamento de Jesse Washington ou por meio da inter-relação de cenas do atentado cometido quando um grupo de protestantes se posicionavam contra uma passeata de Charlottesville que clamava por diversos ideais defendidos pela própria Ku Klus Klan, voltando, ainda, para o discurso absurdo do atual presidente dos Estados Unidos, este filme cumpre com seu papel social. Muito mais do que entretenimento, muito mais do que uma obra realizada para garantir que o tempo de pessoas específicas seja gasto com qualidade, este filme, muito mais do que pedir, clama, instiga, força o espectador à se posicionar, a refletir sobre o mundo a sua volta e compreender que não se pode mais baixar a voz ou calar-se quando pensamentos e eventos como esses seguem acontecendo ao redor do mundo. Acredito que o toque especial de Lee, nessa história, está em sua pegada cômica e sarcástica para criticar toda uma cultura racista que, apesar de diversas lutas, ainda se perpetua em nossa sociedade.
Por tratar-se de um filme tão importante, além de ter gerado uma quantidade considerável de debate e reflexões, esta crítica apresenta-se como um texto conjunto, escrito em duas mãos. Aqui as percepções da Dani se mesclam às reflexões da Bel, mas no fim o que fica é todo nosso carinho pelo longa, além de sua relevância inegável!
- Blackkklansman
- Lançamento: 2018
- Com: John David Washington, Adam Diver, Laura Harrier
- Gênero: Comédia, Drama, Policial
- Direção: Spike Lee