Há muito a se decifrar sobre sonhos. Muitos nos amedrontam, outros procuramos entender seus sentidos e outros são tão vívidos que até nos confundem. Eu tenho certeza que um dia você já acordou e pensou: que sonho maluco! Os sonhos são na realidade a manifestação do que, às vezes, temos de mais íntimo dentro de nós. Imaginem então se existisse uma realidade em que nossos sonhos virassem entretenimento, onde eles pudessem ser reproduzidos para que outras pessoas pudessem assistir, comentar e até palpitarem sobre suas decisões dentro dos sonhos?
O ano é 2067 e o entretenimento não é mais como conhecemos. Não existe Netflix, cinema ou qualquer coisa do tipo e tudo mudou quando um aplicativo chamado Adagio passou a permitir que seus usuários compartilhassem seus sonhos para outros usuários da rede social, sejam eles ao vivo ou gravados.
Kaya Muniz é uma jovem aparentemente comum, mas depois de ter um dos seus sonhos bombados na rede social, acaba experimentando uma droga sintética que a ajuda em seu primeiro sonho lúcido. Kaya então cria um novo gênero dentro do Adagio, o gênero do terror. A fama vem de forma repentina e estrondosa, milhares de curtidas e compartilhamentos fazem com que o próximo sonho de Kaya seja muito aguardado, agora, finalmente, ela pode ser uma dreamer muito famosa, assim como sua melhor amiga Pen e isso acaba enchendo os olhos de uma jovem que só deseja ser mais cool entre os amigos. Mas qual será o preço a se pagar por ter pesadelos todas as noites?
Este é o plot de Adagio, uma história que a princípio deixa muito claro a sua crítica diante a alienação da sociedade para as redes sociais. Entre os jovens a necessidade da aceitação é ainda mais visível, quanto mais curtidas, mas aceito você é. Porém imagine minha surpresa quando percebi que existem ainda mais camadas por trás das páginas de Adagio do que uma simples crítica as redes sociais e a necessidade desenfreada que temos de ser e mostrar o melhor e de buscar validações sem sentidos.
Ao começar e ao finalizar a leitura, Felipe Cagno, roteirista da HQ, disseca a história contando de que forma imaginou o quadrinho. Aqui ele é muito direto em falar sobre o que Adagio fala: será que as redes sociais não reforçam a solidão, a depressão e o desequilíbrio emocional? A intensão é levar o leitor a reflexão, analisar de que forma você está utilizando a tecnologia e de que forma isso impacta a sua vida. Felipe ainda faz uma análise dos prós e dos contras do mundo online, seja distanciando ou aproximando pessoas, seja dando autonomia para novos profissionais, ou seja, tirando a oportunidade de outros. A questão que essa ainda é uma questão e não há uma resposta só para isso.
Tudo é passível de discussão e o tema permite que tiremos diversas conclusões. A verdade é que a premissa de Adagio é uma grande sacada. Infelizmente estamos presenciando tempos em que problemas psicológicos são cada vez mais comuns entre nós. Teria isso a ver com a conectividade que possuímos com o mundo externo? Às vezes eu paro para analisar se um dia meu não seria mais proveitoso se eu não tivesse esbarrado com uma tragédia na minha time-line. É possível. Estaria mais alienada a informação, mas viveria melhor com certeza.
A questão que nem todos estes temas estão ali explícitos nas páginas. Se você não ler o texto de apoio é até possível que passe despercebido. Mas está tudo ali, nas linhas de Sara Prado e Bräo e nas cores de Natália Marques. O que faz de Kaya alguém diferente dentro do Adagio? Por que seus sonhos são tão atrativos? Isso você terá que descobrir durante a leitura, mas se tiver olhos mais atentos, não levará muito para sacar a grandiosidade desta HQ.
Aliás, é possível perceber quando um desenhista entra em cena e outro sai. Isso acontece quando algum personagem está sonhando. Não sei dizer quem é quem, mas confesso que admirei mais a arte dos sonhos (acredito que seja o Bräo). Porém como um todo, todo o quadrinho funciona e retrata de uma forma muito bonita todo este futuro tecnológico.
Por fim, se vale como ressalva, a parte final da HQ foi muito corrida. Foi mais difícil fisgar as entrelinhas com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo. O que é uma pena, dado todos os temas que são explorados na HQ, temas que na minha opinião mereciam mais atenção. Mas se vale como prêmio de consolação, o próprio Felipe Cagno diz que há muito no futuro de Adagio para ser explorado, muitas histórias que espero que a Editora Avec continue publicando pois, a história conversa muito com o presente social que vivemos.
- Adagio
- Autor: Felipe Cagno, Sara Prado, Bräo, Natália Marques, Deyvison Manes
- Ano: 2018
- Editora: Avec
- Páginas: 112
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