A pequena cidade de Iping era tranquila, distante da movimentação incessante dos grandes centros urbanos e livre de acontecimentos extraordinários, contudo, a chegada de um estranho visitante altera profundamente a rotina e imaginário de seus habitantes. De aparência inusitada, envolto em faixas que parecem cobrir uma parte considerável de seu corpo, usando grandes óculos e um pesado sobretudo o novo hóspede da única pensão de Iping solicita que entreguem uma grande quantidade de caixas e caixotes repletos de todo o tipo de material de laboratório. Num piscar de olhos todos os frascos, instrumentos, elementos químicos e livros são transportados para o quarto do indivíduo e, estando este sempre trancado, iniciam-se os boatos acerca das atividades realizadas pelo visitante.

Não bastasse sua aparência peculiar e os segredos que cercam suas atividades, o estranho homem parece não possuir qualquer intenção de explicar-se ou dar satisfações a dona da hospedaria. Quando estabelece as mais breves conexões com os habitantes da cidade parece irritar-se profundamente, explodindo de maneira irracional e, em seus pensamentos e opiniões, sentimos um sentimento de grandeza que tendem a elevá-lo acima de tudo e todos.

[…] ali, cinzenta na penumbra, estavam a cabeça enfaixada e as imensas lentes azuis encarando-o fixamente, com uma neblina de manchas verdes pairando diante delas.

Embora os olhos da cidade estivessem voltados para as ações, movimentos e curiosidades desta figura misteriosa nenhum boato poderia imaginar sua verdadeira condição. Pois o estranho visitante, o explosivo pesquisador de aparência peculiar é invisível! E uma vez que sua condição é descoberta, não apenas a vida dos habitantes de Iping sofrerá drásticas mudanças, quando a vida de habitantes de uma cidade vizinha, que não faziam a menor ideia de que um homem invisível planejava adentrar seus domínios.

Quem acompanha e verdadeiramente lê as palavras que seleciono para elaborar as resenhas que compartilhamos com vocês aqui no Estante Diagonal, deve conhecer meu posicionamento ao abordar clássicos ou obras de ficção científica. Existe um equívoco enorme, ainda perpetuado no meio literário, de que clássicos e grande parte dos livros de ficção científica são difíceis de ler. Como disse diversas vezes antes e seguirei repetindo, nem todo clássico é complexo e profundo a ponto de fazer com que o leitor desista da leitura, da mesma forma, nem toda ficção científica fundamenta-se em conceitos e informações densas a ponto de distanciar o leitor de uma compreensão geral de seu mundo e personagens. O Homem Invisível, com sua escrita simples e acessível, aventura instigante e momentos reflexivos demonstra muito bem o que sempre defendi: não é porque um clássico, ou ficção científica é difícil, complexo e denso que todos os clássicos, ou ficções científicas também o serão.

Um dos elementos principais deste livro é o mistério que cerca o homem invisível. São os possíveis meios pelos quais ele transformou-se, localiza-se nas características de sua condição, nas possíveis consequências negativas de tornar-se invisível, além do percurso que o trouxe até a pequena cidade de Iping. Assim, a obra instiga o leitor a avançar por cada página e desvendar o mistério. Mas, não satisfeito com a base que delimita para sua história, H.G. Wells – um dos principais autores da ficção científica – constrói uma aventura para o leitor, delineando perseguições, discussões e lutas dignas de qualquer outro livro que não se encaixe nos moldes do que compreendemos por ficção científica ou clássico. É por meio de direcionamentos de narrativa, de escolhas conscientes do autor, de uma escrita acessível, de elementos que instigam o leitor e pela redução de explicações científicas aprofundadas que Wells fornece uma obra que nega o pensamento de que clássicos são difíceis de ler.

Contudo, vale ressaltar que em momento algum a narrativa perde oportunidades de refletir sobre aquilo que apresenta ao leitor. Mesmo não se tratando do livro mais crítico do autor – vale lembrar que aqui expresso minha opinião enquanto leitora de H.G. Wells e ficção científica – confesso ter encontrado aqui um posicionamento intrigante com relação a indivíduos que pensam estar acima de tudo e todos. Porém, ouso ressaltar que também podemos observar uma crítica ao pensamento de que a ciência está acima de qualquer limite filosófico, moral ou social. As discussões que tanto aprecio em obras clássicas da ficção científica encontram-se aqui com uma roupagem muito mais acessível e instigante, possibilitando ao leitor não somente o acompanhamento de aventuras e mistérios incríveis, mas também algumas reflexões pertinentes com relação ao próprio ser humano.

O Homem Invisível é uma obra razoavelmente simples, de escrita instigante e acessível, com uma narrativa repleta de aventuras e mistérios, perseguições e detalhes curiosos e, como não poderia faltar, uma porção interessante de reflexões. Como tantos outros clássicos da ficção científica, ou apenas clássicos, ou somente ficções científicas, esta obra não distancia o leitor, não emprega uma escrita difícil, um enredo complexo ou explora reflexões profundas ocasionando no fato de que somente os mais acostumados com livros do gênero serão capazes de compreendê-la. Aqui encontramos uma porta de entrada tanto para os clássicos quanto para a ficção científica, aqui observamos a diversidade muitas vezes obscurecida por equívocos ainda propagados no meio literário, mas acima de tudo, aqui encontramos a oportunidade perfeita para permitir que novos leitores passem a amar os clássicos da literatura.

  • The Invisible Man
  • Autor: H.G. Wells
  • Tradução: Alexandre Barbosa de Souza e Rodrigo Lacerda
  • Ano: 2017
  • Editora: Zahar
  • Páginas: 199
  • Amazon

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