Quando você consome uma quantidade considerável de seriados, acompanhando desde comédias leves com episódios curtos até grandes produções capazes de delinear a magia e intrigas de uma narrativa épica, você acaba por fundamentar determinadas visões e pensamentos que, não importando quais sejam as novas histórias que decida acompanhar, serão responsáveis por balizar uma parte importante de suas opiniões de uma nova série. É por esse motivo que – e levando em consideração todos os seriados que já assisti, muitos dos quais já tive o prazer de compartilhar em formato de texto com vocês – no momento em que assisti aos primeiros minutos do primeiro episódio de Riverdale carregava comigo dois pensamentos importantes que preciso expressar antes de continuar a tratar sobre o seriado em si, assim, espero que compreendam todos os comentários que farei a seguir.
Todo universo ficcional existe e, principalmente, desenvolve-se dentro de uma lógica, padrão e regras específicas expostas ao leitor, observador ou espectador ao longo da própria narrativa. Este universo ficcional, seja ele um livro, filme, seriado ou jogo de computador não precisa explicitar todos os elementos que o constroem e dão vida, não é obrigado a apresentar as bases de seu funcionamento ou mesmo o que deveríamos considerar plausível dentro de seu próprio contexto. Em meio aos detalhes deste ou daquele mundo o próprio espectador é capaz de perceber a plausibilidade de ações, consequências e escolhas em cada universo. Portanto, no momento em que os eventos de uma história transcorrem no contexto ficcional da realidade como a conhecemos não podemos ignorar o princípio da plausibilidade e fingir que determinados eventos são aceitáveis.
Esse pensamento conecta-se então ao fato de que, quanto mais séries adolescentes assisto mais me decepciono com a maneira com que suas continuações são pensadas. Suas primeiras temporadas normalmente são incríveis, instigantes e nos impulsionam a seguir ansiosos para os próximos capítulos, porém, quando chegamos às temporadas seguintes a narrativa perde tanto o sentido que se torna difícil defender suas qualidades. É deste modo que chegamos à primeira temporada de Riverdale e a todos os problemas que encontramos ao longo de sua segunda temporada.
Produzida pela CBS e inspirada na narrativa de Archie Comics, uma história em quadrinhos publicada por volta de 1942, o seriado estabelece como ponto de partida o desaparecimento e assassinato de Jason Blossom, jovem pertencente a uma das mais importantes e ricas famílias da cidade de Riverdale. Como boa história de mistério e crime que é, no mesmo momento em que Jason Blossom desaparece, Archie Andrews, nosso personagem principal artificialmente ruivo, desfruta de um piquenique romântico com sua professora de música, contudo, ao ouvirem fortes sons de tiros os dois deixam a mesma floresta e fingem que nada aconteceu, afinal, ninguém pode saber que estavam juntos no momento em que ouviram os tiros. Assim, pouco a pouco a mentira consome Archie, o mistério ao redor da morte de Jason Blossom cresce, o melhor personagem de todo o seriado, Jughead, é apresentado e outros adolescentes se interligam à trama com o intuito de desvendar os segredos deste crime, além de lançar luz aos detalhes mais sórdidos que corrompem a pacata cidade de Riverdale.
Em sua primeira temporada encontramos todos os motivos para se apaixonar por personagens, características e até mesmo lugares específicos, vindo a ansiar por novos mistérios e segredos a serem revelados. Os episódios equilibram de forma bastante satisfatória dramas, dúvidas e erros adolescentes ao crime que serve de gatilho para a narrativa. A atmosfera do seriado é misteriosa, combinando com seu direcionamento, que trata justamente da maneira com que um grupo de adolescentes cursando o colegial consegue desvendar os segredos de um crime que nem mesmo a polícia foi capaz de descobrir. Os ambientes internos e externos, seja em sua coloração ou aspectos de composição geral são belos, elaborados, repletos de detalhes. Todo o visual da série é lindo, demonstrando um cuidado muito grande por parte dos produtores para com aspectos mais técnicos. Os figurinos se interligam à personalidade e particularidades de cada personagem, nos levando para a antiga e adorável fórmula onde encontramos a patricinha, o jogador de futebol americano, o garoto diferente e um tanto esquisito, a garota estudiosa e certinha, porém, moldados de forma a não pesar nos elementos caricatos e sim em traços mais sutis dos personagens.
Tudo corre muitíssimo bem ao longo da primeira temporada: as cenas são bem pensadas; os adolescentes não cometem equívocos catastróficos ou difíceis de acreditar, existe todo o drama adolescente sim, mas ele não interfere no desenrolar da narrativa; o mistério é respondido aos poucos, permitindo que o espectador elabore suas próprias teorias; os adultos possuem certa importância e, na medida do aceitável, não perdem seu poder apesar das ações de jovens metidos a detetives; o figurino é um amor e a trilha sonora também. Mas estamos falando de uma série teen e não demora muito para a coisa desandar.
O problema de Riverdale é que todo o trabalho realizado ao longo da primeira temporada desaparece no momento em que a história ganha sua tão esperada continuação. O princípio da plausibilidade, o mesmo que fiz questão de destacar anteriormente, parece surgir apenas nos momentos em que os roteiristas e produtores carecem de algum elemento racional para explicar ou mesmo interligar alguns eventos. Aqueles jovens inteligentes, por vezes maduros e responsáveis de um momento para o outro esquecem suas principais características e cometem erros brutais. As conversas e trocas de informação desaparecem, personagens cuja personalidade anteriormente era retratada como analítica agem de forma precipitada, os adultos perdem cada vez mais o poder e relevância, chegando ao ponto de que um novato, recém aceito por uma gangue de motoqueiros, que nunca foi eleito presidente ou líder, um adolescente que nunca participou da coisa toda, passa a comandar determinados detalhes do grupo. De um momento para o outro todos os adultos se transformam em objeto somente necessário quando convém aos roteiristas.
Os policiais? Não são mais capazes de desvendar crimes e capturar assassinos em série. Os pais e mães? Não são mais capazes de aconselhar seus filhos e lhes apresentar os melhores caminhos a se seguir, com exceção de um único pai, talvez. A prefeita da cidade? Não é capaz de tomar qualquer ação política para trazer ordem. Mas os adolescentes? Eles descobrem segredos importantíssimos acerca de um milionário corrupto, agem de forma mimada, egoísta e inconsequente, adquirem acesso a cartões de crédito e transferem grandes quantias de dinheiro de forma anônima sem levar qualquer repreensão, desvendam crimes e comandam gangues de motoqueiros. Alguém que assistiu a brilhante Sons of Anarchy simplesmente não pode aceitar a forma como um novato toma as ações mais impensadas, colocando em risco não apenas os empreendimentos do grupo, mas a vida de cada um deles. Ao fingir que os personagens sabem exatamente o que estão fazendo, permitindo que ajam de forma alucinada e sem qualquer reflexão, Riverdale joga o princípio da plausibilidade para o ar e ainda ri da cara do espectador que ousa acreditar que tudo aquilo é, no mínimo, baseado em alguma razão distorcida.
No fim, acredito que vale ressaltar que o seriado tem seus pontos fortes, seus méritos, seu brilho. É inegável o cuidado com todo o aspecto visual, mas se realmente o quisermos levar a sério, não podemos ignorar os deslizes de construção de narrativa, além da modificação de regras, personalidades e características estabelecidas anteriormente pelo próprio universo ficcional para que tudo se adeque aos novos direcionamentos que a história almeja tomar. Caso o seriado não se leve a sério, no sentido da narrativa que busca delinear para o espectador, tudo o que cativou pode se perder por erros bobos e simples. E digo isso como alguém que se importa, pois, caso não importasse, simplesmente abandonaria o seriado e iniciaria a procura por algo melhor para assistir.
- Riverdale
- Criado por: Roberto Aguirre-Sacasa
- Com: K.J. Apa, Lili Reinhart, Camila Mendes, Cole Sprouse
- Gênero: Mistério, Drama Adolescente, Crime
- Duração: 13 a 22 episódios – 45 minutos