Por motivos que o primeiro livro da quadrilogia A Passa-Espelhos não se dispõem a explorar, embora existam indícios e uma crença ferrenha de minha parte de que estes aspectos serão melhor explorados ao longo dos próximos volumes da série, o mundo como o conhecemos deixou de existir. Graças a eventos sobrenaturais, poderes cósmicos ou pela própria inconsequência de ações humanas o planeta se dividiu em diversos territórios flutuantes e, de alguma maneira, seus ocupantes vieram a desenvolver poderes específicos e peculiares. Poderíamos compreender estes territórios segregados como grandes ilhas dispersas no espaço, localizadas em meio a um céu recoberto por névoa, tão misterioso quanto suas próprias origens.

Neste contexto seremos redirecionados para Anima, uma arca, ilha ou território flutuante comandada por um grupo de mulheres denominado Decanas. Estas, por sua vez, respondem ao espírito familiar de Anima, a curiosa e intrigante Artémis – vale ressaltar que também não está nos planos deste primeiro livro se aprofundar nas figuras dos espíritos familiares, os maiores mistérios ligados ao contexto desta história permanecerão um mistério para o leitor. Fundamentada neste sistema organizacional que poderíamos muito bem considerar matriarcal, a comunidade de Anima também é reconhecida por seus casamentos entre primos e seus poderes animistas. É assim que iremos conhecer Ophélie, nossa personagem principal que foi prometida em casamento a um noivo desconhecido, proveniente do Polo, uma arca distante, fria, congelante e tão misteriosa quanto tudo o que cerca este universo ficcional.

Ophélie é descrita como esquisita, diferente, o tipo que não se encaixa aos padrões e anseios da sociedade em que vive. Ela é estudiosa, gosta de sua rotina e não sente necessidade de encontrar um parceiro para a vida, usa grandes óculos de grau e está sempre com seu cachecol que parece ter vida própria. Devido aos seus poderes ela pode se locomover através de espelhos, além de ser capaz de coletar dados e informações sobre o passado de objetos usando apenas o toque e, por mais incrível que possa parecer, essa moça estranha, um pouco estabanada e muitíssimo intrigante foi prometida em casamento por meio de um acordo realizado entre as Decanas e a corte de Polo.

Agora, seu noivo Thorn desembarca em Anima com o intuito de leva-la a corte da Cidade Celeste. Contudo, o que logo o leitor irá descobrir e, em contrapartida, levará muito tempo para entrar nas mentes de Ophélie e sua tia Roseline, é que as duas deixaram a segurança de Anima e, os costumes, tradições e ordem social de Polo são extremamente diferentes, obrigando nossas duas queridas personagens a adaptar-se, questionar tudo e todos, não confiar em ninguém e, principalmente, perceber que existem muitos mistérios envolvendo as arcas, seus espíritos familiares, Thorn e sua família além de toda a corte da Cidade Celeste.


Contrariando as observações de alguns leitores com relação a escrita de Christelle Dabos, não fui capaz de considera-la poética em nenhum momento ao longo da leitura. Diria tratar-se de uma escrita rica em detalhes, criativa quando da construção de seu universo ficcional, dos personagens e poderes que busca apresentar, além de bastante madura e precisa com relação aos direcionamentos que pretende tomar. Este não é um livro difícil, complexo e denso ao ponto de perder o interesse de leitores menos acostumados, porém, é detalhado e construído de tal forma a agradar também os leitores mais exigentes.

Por delinear cada detalhe da trama com cuidado e precisão, permitindo a transmissão de informações cruciais acerca do contexto em que a personagem principal se encontra, possibilitando que a narrativa flua de maneira gradual, solucionando pequenas teorias enquanto formula outras muito mais amplas, também teremos a oportunidade de nos questionar sobre assuntos que, como mencionei antes, não serão abordados neste primeiro volume. Observando a estratégia da autora seria possível dizer que sua intenção principal neste livro é apertar o gatilho para que Ophélie encontre sua motivação própria, que o leitor compreenda profundamente o contexto em que a personagem se encontra e finalize o livro com grandes dúvidas sobre o que irá acontecer a seguir e como aquele mundo chegou onde chegou.

A narrativa é instigante, uma vez que novos elementos são apresentados a todo momento. É curiosa e criativa por demonstrar um mundo novo que, e digo isso pensando em minhas experiências prévias de leitura, nunca tive a chance de encontrar em outras obras de fantasia. É fluida e acessível, mas em momento algum perde a chance de mostrar maturidade além de uma porção encantadora de nuances. Aqui cenas, ações e comentários podem gerar diversas interpretações e é interessantíssimo perceber como podemos nos equivocar com cada indivíduo, cenário, poder e famílias.

Para fechar o pacote, Christelle Dabos delineia uma porção grandiosa de crítica social e, para encantar ainda mais alguns leitores, compartilha críticas ferrenhas inspiradas no discurso feminista. Estes elementos, entretanto, encontram-se intimamente ligados à narrativa, aos acontecimentos e contexto da história, demonstrando ainda mais a maturidade e cuidado da autora ao estruturar sua trama. Quando demonstra atitudes e comentários a autora aproveita a oportunidade para fazer o leitor refletir. Quando detalha costumes e culturas diversas ela confronta o leitor com uma realidade que se assemelha muito com a nossa e, assim, é capaz de leva-lo a edificar seus próprios pensamentos acerca deste ou daquele caso. Uma vez que Thorn e a corte estão profundamente baseados num discurso patriarcal, a autora encontra terreno fértil para estabelecer todo tipo de crítica social e resta dizer que ela é capaz de aproveitar todas as oportunidades possíveis.

Embora muitos só encontrem elogios quando abordam Os Noivos do Inverno, confesso ter observado um grande deslize na construção da personagem principal e, por se tratar do que se trata não fui capaz de ignorar. Ophélie sofre de uma enorme falta de autopreservação o que pode vir a irritar alguns leitores por conta das situações em que se mete e entristecer outros que compreendem que muito do que a personagem sofreu poderia ter sido evitado caso refletisse um pouco mais e percebesse a realidade do mundo em que se encontra.

Uma vez que Ophélie está num ambiente totalmente diferente, com regras, costumes e cultura diversificada, lidando com pessoas com poderes mais destrutivos e não tão confiáveis, se espera o mínimo de cuidado da personagem, o que não acontece. Ela age por impulso ou sem avaliar melhor a situação, ignora o que desconhece e acredita compreender tudo com poucas informações possibilitando que seu sofrimento cresça. É possível entender que tudo isso será responsável por transformar a personagem no final do livro, mas um pouquinho mais de autopreservação não faria mal a ninguém, principalmente a Ophélie.

No fim, Os Noivos do Inverno comete um erro imperdoável em minha sincera e humilde opinião, mas, por acertar em tantos aspectos, por construir um universo ficcional tão rico e detalhado, por estabelecer mistérios e aventuras tão instigantes, por possibilitar o crescimento e amadurecimento da personagem, por encontrar-se repleto de nuances e críticas sociais ele se destaca como uma leitura mais do que válida e encantadora. Esta história cumpre o papel que todo primeiro livro de série deve cumprir: instiga a leitura, confunde e soluciona mistérios e acima de tudo deixa uma porção de perguntas para serem respondidas nos próximos livros. Considerando tudo o que li neste primeiro volume, creio se tratar de uma série grandiosa e muito bem escrita, daquelas que guardaremos no coração por muito tempo. Agora resta esperar e torcer para que a Morro Branco não demora para publicar a continuação!

  • Les Fiancés de I'hiver
  • Autor: Christelle Dabos
  • Tradução: Sofia Soter
  • Ano: 2018
  • Editora: Morro Branco
  • Páginas: 416
  • Amazon

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