Antes dos campos serem preenchidos até o horizonte por uma espessa e agradável camada de verde, dos mares transformarem-se em lar de criaturas curiosas, do vento adquirir a habilidade de transportar aromas inebriantes ou mesmo do próprio nascimento da humanidade, o mundo era comandado por titãs. Seres mais antigos que a própria existência, detentores de poderes assombrosos, praticamente oniscientes e conhecedores dos mais espantosos e encantadores segredos do universo, os titãs acreditaram que os limites e destino da terra estavam em suas mãos. Contudo, quando Zeus, um dos filhos de Cronos – titã mais poderoso, líder absoluto, comandante de todos os seus semelhantes e comedor de todos os filhos que haviam nascido antes de Zeus -, convence outros titãs a se unirem a seus irmãos deuses e lutarem contra o reinado de Cronos, todas as regras do Olimpo sofrem alterações.

Com o aprisionamento de Cronos, o Olimpo passa a ser comandado por Zeus e seus semelhantes. Enquanto estes deuses poderosos seguem com suas intrigas, seu abuso de poder e sua constante intromissão no mundo e destino humano, os titãs fazem o mesmo em seus reinos distantes, abissais, obscuros e afastados de seus familiares. É neste mundo de titãs e deuses que conheceremos Hélio, o orgulhoso e cruel comandante do sol, do fogo que ilumina o dia e instiga a vida de todo ser humano. Hélio casou-se com Perses, filha de Oceano, titã que comanda os mares e sua criaturas, dividindo “responsabilidades” com seu parente mais novo, Poseidon.

É da união entre Perses e Hélio que nasce Circe, uma deusa com sangue de titã e voz com nuances de humanidade, uma moça considerada feia por sua mãe e ignorada por seu pai, perseguida por seus irmãos e ignorante de seus verdadeiros poderes, quem, pouco a pouco passa a reconhecer os jogos, a crueldade, as fofocas e intrigas como nada menos do que o mais baixo comportamento exercido por deuses e titãs ignorantes.

Eu não fiquei surpresa com o retrato que a canção pintava de mim: a bruxa orgulhosa desfeita diante da espada do herói, ajoelhando-se e pedindo misericórdia. Humilhar mulheres parece ser um dos passatempos preferidos dos poetas. Como se não pudesse haver história se não rastejarmos e choramingarmos.

Na medida em que Circe convive com estes deuses e titãs mesquinhos, conforme somos apresentados a suas inseguranças, pensamentos, dúvidas e paixões, observaremos também sua responsabilidade na criação de sombrios monstros marinhos, sua estranha e confusa compaixão por Prometeu, além do fortalecimento de sua personalidade e consciência. Ao acompanharmos sua vida, seu amadurecimento, suas dores, alegrias e percepções, compreenderemos também os motivos pelos quais recebeu o castigo de ser exilada na ilha de Eana, as maneiras com que descobriu a extensão e força de seus poderes, além de toda uma maravilhosa e encantadora inter-relação de mitos e histórias gregas que cruzaram ou não com sua linha da vida.

Circe, embora nos apresente a jornada de crescimento, amadurecimento e descoberta dos poderes e força de vontade de uma mulher, estando repleto das mais belas mensagens de superação, construção da própria consciência e personalidade, além do valor, dores e contexto que somente nós, mulheres seremos capazes de compreender profundamente, também se trata da mais encantadora homenagem aos mitos gregos.

A narrativa de Madeline Miller, com toda sua maturidade e firmeza, sua beleza na escolha de palavras, sua dureza ao retratar situações que remetem à própria existência humana, sua capacidade de criar a mais admirável conexão entre a personagem principal e o leitor, também se expressa como o mais puro e encantador mito grego escrito na atualidade. Existe algo na escrita da autora que, muito mais do que demonstrar seu conhecimento, sua habilidade para com a escrita ou seu domínio da narrativa, desperta no leitor a sensação de estar acompanhando um verdadeiro mito grego e, ainda que apenas o leitor que passou por suas páginas seja capaz de experimentar esta sensação, admito tratar-se de uma das características mais curiosas e belas deste livro.

Da mesma maneira com que delineia um dos mais encantadores mitos gregos atuais, a autora explora e reflete sobre a figura feminina, o papel da mulher na sociedade, as dores, desafios e preconceitos que enfrentam, os amores que firmam e destroem, as alianças que constroem e, principalmente, como a visão de si muda quando se encontram nos mais variados contextos. Muito mais do que apresentar críticas aos preconceitos, estereótipos e ao próprio pensamento hegemônico existente em volta da figura da mulher, a autora explora e celebra nossas diferentes personalidades, os traumas que possuímos em comum, os erros que cometemos ou julgamos quando outra amiga, irmã, tia, mãe, ousou cometer. Graças a essa estratégia a autora permite aos leitores e leitoras perceberem os diversos lados de uma mesma história, conectando-se com cada personagem mesmo quando estes decidem-se por caminhos que não se encontram de acordo com nossos próprios valores.

Deste modo, na medida em que exercitamos o respeito, a busca por compreender o contexto, personalidade e sentimentos do outro, além da própria empatia, somos lançados às intrigas dos deuses e, ainda que muitas histórias livres de qualquer conexão quando observadas no universo clássico da mitologia grega tenham-se alinhado para a edificação desta narrativa, o resultado final não poderia ser mais expressivo. Aqui os heróis de guerra ganham profundidade psicológica e traumas de guerra; deuses demonstram sua face mais cruel e livre de qualquer cuidado para com o próximo; ninfas e náiades escondem sob a superfície uma porção de segredos, inseguranças e percepções de que, por não possuírem tantos poderes nunca serão capazes de atingir postos mais elevados em meio a esta sociedade confusa e injusta. E, por fim, temos Circe, quem viveu por séculos e séculos em meio aos discursos de deuses e titãs e, pouco a pouco, percebeu as rachaduras que permitiam que a luz entrasse e clareasse os problemas existentes em sua comunidade.

Assim, Circe trata-se de uma obra sobre a trajetória de vida de uma deusa titânica, mas também não deixa de ser uma visão atual sobre os mitos gregos, uma maneira de permitir ao leitor inserir-se de corpo e alma em outro mundo e outra época. Da mesma forma, o livro é uma reflexão maravilhosa e encantadora sobre a figura feminina, sobre o papel da mulher, mas também é uma verdadeira homenagem a toda uma cultura e forma de narrativa a qual vários leitores ainda não obtiveram a oportunidade de conhecer pessoalmente. Circe é uma obra madura, por vezes bela e repleta de magia, mas em outros tantos momentos é cruel, direta e reflexiva. Não é um livro destinado aos amantes da mitologia, mas sim um livro destinado aos amantes de boas histórias e, se Madeline Miller confirma algo ao longo das páginas desta obra, é que sabe construir e conduzir uma boa história.

  • Circe
  • Autor: Madeline Miller
  • Tradução: Isadora Prospero
  • Ano: 2019
  • Editora: Planeta
  • Páginas: 368
  • Amazon

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