Muitos artigos e teses foram redigidos acerca do cunho autobiográfico de A Redoma de Vidro. Especialistas, estudiosos e críticos da obra, trajetória e vida íntima de Sylvia Plath ressaltam suas batalhas contra depressão, destacam as ações e traições de seu ex-marido, observam as atitudes de uma mulher que sucumbe ao mundo e às armadilhas de sua própria mente, demonstram os últimos momentos de sua vida. Uma porção inimaginável de conexões já foram estabelecidas entre Esther Greenwood, a protagonista de A Redoma de Vidro, e a figura de Sylvia Plath. Assim como sua heroína, a autora teve de lidar com uma redoma de vidro cujo ar viciado impossibilitava a respiração tranquila, uma visão clara e o surgimento de pensamentos livres de qualquer sombra, dúvida ou elemento torturante. A depressão faz parte tanto da vida de Sylvia quanto da de Esther e, uma vez que a vida imita a arte e a arte imita a vida, torna-se difícil compreender onde se inicia uma e termina a outra.
Um sonho ruim. Para a pessoa dentro da redoma de vidro, vazia e imóvel como um bebê morto, o mundo inteiro é um sonho ruim.
Da mesma maneira, muitas resenhas e comentários já foram redigidos com o intuito de abordar a narrativa sombria, pesada, confusa, crítica e brilhante de A Redoma de Vidro. Diversos leitores se deixaram levar pela mente maravilhosamente encantadora de Esther Greenwood, moça cuja consciência crítica nos direciona para pensamentos aguçados, agridoces e absurdamente reais acerca do papel da mulher na sociedade, sobre as mentiras e desequilíbrio do matrimônio, as crueldades e abusos sofridos por mulheres e mulheres ao redor do mundo, a luta contra os fantasmas da própria mente e, como se não bastasse, os preconceitos para com transtornos e doenças mentais.
Uma vez que tanto já foi dito, discutido, refletido e defendido acerca daquela que muitos conhecem como a principal obra da autora, esta resenha não nasce com qualquer anseio de demonstrar algo novo, mas sim de agregar opiniões e visões ao debate existente, buscando, ainda, instigar novos leitores a conhecer a trajetória destas mulheres adoravelmente peculiares.
A Redoma de Vidro nos apresenta, sem rodeios, de forma magistral, delicada e por vezes absurdamente sombria a figura, personalidade e totalidade de Esther Greenwood. Apesar do início aparentemente leve, das críticas duras e cruas direcionadas a ação de homens mesquinhos, hipócritas, mentirosos ou que se consideram verdadeiramente superiores, para além dos vestidos, maquiagens e encontros de uma moça que aspira e sonha com o mundo, que deseja tornar-se uma grande e renomada escritora, a narrativa logo nos direciona para as dúvidas, o vazio, as sombras, a melancolia e tristeza que invadem a mente e atitudes de uma moça tão especial quanto eu e você. Desta forma, pouco a pouco observamos a mente de Esther se voltar contra ela. Acompanhamos como a moça perde o controle. Percebemos similaridades dolorosas entre ficção e realidade e, deste modo, transformamo-nos em seres pertencentes a história.
A depressão não surge repentinamente. Ela está ali desde o início da narrativa, escondendo-se por entre lembranças, decisões, atitudes, vazios, incapacidades e dúvidas. Esta quase personagem adquire controle sobre a mente da personagem principal. No momento em que invade os sonhos, os planos, os desejos e a própria visão de Esther ela impossibilita que a moça concretize qualquer ação ou plano, incapacita-a de pensar de maneira racional e ágil, domina suas emoções e a preenche com nada além de vazio, sombras e morte.
Embora doloroso em diversas passagens, pesado e cruel em outras, delicado e sensível do início ao fim, A Redoma de Vidro nada mais é uma do que uma verdadeira trajetória de compreensão, sensibilização e conscientização, uma demonstração de aspectos característicos do cotidiano de alguém que convive, dia após dia, com os sintomas e desafios da depressão. Faz parte da leitura sentir as dores de Esther na pele, assim como faz parte da leitura derramar lágrimas por todas aquelas que sofreram nas mãos de terapias equivocadas, de verdadeiras crueldades e torturas que prometiam cura, de pensamentos preconceituosos para com algo que vai muito além de força de vontade ou problemas de caráter, mas, principalmente, por todas aquelas que sucumbiram e perderam a luta para essa personagem silenciosa que é a depressão.
A Redoma de Vidro é um olhar sensível, sombrio e verdadeiro perante as nuances e características da depressão, contudo, também é uma crítica pertinente para o modo com que, ainda hoje, lidam-se com seus sintomas e com todas as pessoas que sofrem e conhecessem as dores e desafios desta personagem tão real quanto qualquer um de nós. Da mesma maneira, a obra é uma verdadeira lista dos padrões, perspectivas, sistemas e instituições às quais mulheres e mulheres enfrentaram e enfrentam com o intuito de adquirir igualdade, equidade, justiça e verdadeira liberdade. Apesar de importantíssimo, preciosíssimo e profundamente tocante, ressalto que este livro deve ser lido com cuidado, responsabilidade e consciência, uma vez que lida com temas difíceis que podem mexer com leitores sensíveis, apresentando verdadeiros gatilhos.
Com sua escrita dura, e, em diversos momentos, verdadeiramente delicada, Sylvia Plath nos presentou com um relato fictício fortemente inspirado em suas vivências, dores, desafios e melancolia. É triste pensar que desde então perdemos tantas outras mentes maravilhosas, criativas e repletas de histórias para a depressão, é desolador perceber o quanto ainda evitamos abordar o assunto, o quanto ainda julgamos sem saber, quantas batalhas não conhecemos e quão longo é o caminho que precisamos trilhar. Porém, ainda que de sua própria maneira, este livro resiste ao tempo e a todas as batalhas, a todos os desafios e todos os preconceitos, lançando luz à mais um dos problemas que insistimos em ignorar, mas que seguirá nos assombrando até o dia em que, sem medo ou vergonha, busquemos lidar com ele.
- The Bell Jar
- Autor: Sylvia Plath
- Tradução: Chico Mattoso
- Ano: 2019
- Editora: Biblioteca Azul
- Páginas: 280
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