Dentro dos limites de tempo e espaço de um futuro distante, um ser peculiar e de aparência muitíssimo semelhante a humana escreve palavras, frases e incríveis histórias nas páginas de cadernos recolhidos em meio aos destroços do que um dia se proclamava como o extenso e rico império humano. Ao garantir a proteção e propagação da narrativa de todos aqueles que vieram antes de seu nascimento, além de manter viva a voz, sonhos, personalidade e sacrifícios de todos que auxiliaram a construção de sua comunidade, este ser inusitado, fruto de objetivos, experimentos e planos cruelmente adoráveis, facilita nosso caminho ao longo dos capítulos finais da trilogia MaddAddão.
Os verdadeiros jardineiros acreditavam que a raça humana estava prestes a sofrer um colapso. Isso aconteceria mais cedo ou mais tarde, e mais cedo talvez fosse melhor.
Os direcionamentos que permitem a construção dessa história estão intimamente ligados aos eventos finais de O Ano do Dilúvio, segundo volume da trilogia. Contudo, muito mais do que garantir a continuidade da narrativa, apresentando ao leitor o destino de personagens que se tornaram tão caros e preciosos após a finalização dos dois primeiros livros, MaddAddão responsabiliza-se, também, por unificar todas as linhas narrativas, os personagens principais e secundários, os percursos e sacrifícios, os mistérios e dúvidas em um grande desfecho. Graças a habilidade de Margaret Atwood em estabelecer maravilhosas interconexões, este livro demonstrará todos os principais detalhes e eventos que uma vez fundamentaram esta verdadeira e ficcional sociedade em ruínas, da mesma forma, observaremos como as ações e escolhas de personagens específicos aceleraram a degradação e destruição humana.
Muito mais do que oferecer respostas a dúvidas e curiosidades acerca do mundo sombrio que criou, a autora oferece ao leitor a possibilidade de compreender o plano geral, de perceber como tudo se conecta para, então culminar neste ou naquele destino final.
Ao resgatarem Amanda da dupla de painballers, Toby e Ren encontram Jimmy, um dos personagens principais de Oryx e Crake e conselheiro dos curiosos e admiráveis crakers, nova espécie humana totalmente produzida em laboratório. Uma vez que Jimmy e Amanda sofreram todo o tipo de provação física e emocional imaginável, Toby e Ren reúnem os crakers e os enfermos para retornarem ao acampamento de sobreviventes humanos, talvez os últimos exemplares da verdadeira humanidade.
Após estabelecerem-se no acampamento, reencontrarem amigos e paixões antigas, cuidarem dos enfermos e planejarem pequenas ações futuras, a verdadeira narrativa desta obra terá início. Por meio do relacionamento firmado entre Toby e Zeb, personagem misterioso dos livros anteriores, descobriremos a trajetória de vida do personagem, sua ligação com Adão Um, além de como o grupo dos Jardineiros de Deus teve início e quais eram suas ligações com Crake e todos os eventos que estavam por vir.
Com a inserção dos crakers à comunidade de sobreviventes humanos, observaremos os pequenos conflitos e choques provenientes do contato com formas de ser, agir e pensar divergentes. Do mesmo modo, acompanharemos as belas mudanças proporcionadas pelo convívio respeitoso, harmonioso e, verdadeiramente humanos entre espécies. Compreenderemos, ao longo dos problemas enfrentados, desafios superados, ensinamentos adquiridos e das amizades estabelecidas as diversas maneiras de se modificar toda uma realidade afim de proporcionar relações justas e equilibradas entre seres totalmente diferentes.
Porém, assim como toda boa história precisa de um ponto final, ao seguirmos o percurso de Toby, Zeb e Jimmy por entre os eventos futuros, teremos a oportunidade de acompanhar alguns de seus sonhos realizados, de observar o bem que fizeram para outros seres e personalidades. Da mesma forma, receberemos lições valiosas e, na medida em que rumamos com cada personagem para seus desfechos únicos, poderemos, ainda, encontrar a atmosfera perfeita para derramar algumas lágrimas ao perceber como estes eventos, personagens e mundo pós-apocalíptico, foram capazes de transformar contextos tão sombrios em uma experiência de leitura inegavelmente bela e repleta de lições.
Embora Margaret Atwood mantenha seu tom crítico com relação ao deslumbramento científico e tecnológico, às ações impensadas de corporações e governos que buscam o lucro acima de todo e qualquer valor ético e moral, à crescente e incontrolável destruição de cenários naturais, ao descaso total com todo e qualquer ser animal e vegetal, além do fato de que os direcionamentos atuais podem culminar na destruição da sociedade como a compreendemos, existe algo novo em sua escrita.
Aqui observamos mais descrições e cenas bem-humoradas, repletas de um cuidado enorme para que os eventos sombrios não interfiram nos momentos leves, engraçados, adoráveis por se tratarem da mais pura realidade transformada em ficção. Aqui, muito mais do que as famosas críticas bem fundamentadas, da exploração do contexto geral, do sarcasmo e ironia voltada a nossa própria essência humana, encontramos uma Margaret Atwood carente de beleza, delicadeza e serenidade e, graças a sua necessidade de introduzir cada um destes elementos em sua narrativa, percebemos como, pouco a pouco, sua narrativa se torna bela.
Em meio as ruínas provenientes dos piores erros humanos encontramos esperança. Mesmo nos atos mais cruéis, injustos e angustiantes observamos a possibilidade de superação. Juntamente das relações humanas, mas também daquelas estabelecidas entre espécies diferentes, percebemos a constituição de um convício harmônico, respeitoso, repleto de significado e lições. Mas, é ao inserir o valor das histórias para a consolidação de um futuro novo, é na declaração de que toda e cada narrativa possuí dentro de si uma mensagem importante, que MaddAddão cativa os defensores de histórias. Ao ressaltar como nossa voz permanece viva em meio às palavras de um texto, aos eventos de uma narrativa, garantindo que nossos valores e mensagens sejam transmitidos para o futuro, Margaret Atwood finaliza sua trilogia de forma com que nenhum leitor poderia, ou deveria ousar criticar.
Para aqueles que conhecem e amam a trilogia MaddAddão, mas também para todos aqueles que nunca tiveram a oportunidade de realizar a leitura dos livros que compõem esta história, deixo aqui minha mais sincera e apaixonada recomendação de leitura! Estes três livros são uma crítica ferrenha, pertinente e necessária à sociedade e mundo contemporâneo, contudo, são também uma das histórias mais sombrias e belas que já tive a chance de conhecer e, por conta de todo e cada um dos elementos que a constituem, desejo e clamo que mais leitores busquem conhecê-la.
- MaddAddam
- Autor: Margaret Atwood
- Tradução: Márcia Frazão
- Ano: 2019
- Editora: Rocco
- Páginas: 446
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