Em 1947, após 200 anos de colonização inglesa, a Índia passou por um processo de partição, atenuado por um conflito político-religioso, onde um novo país acabou sendo criado. Na Índia ficaram os hindus e no Paquistão, os muçulmanos. O povo se dividiu numa travessia extremamente perigosa que movimentou cerca de quatorze milhões de pessoas, quando hindus que estavam no então, novo Paquistão, deveriam se mudar para as demarcações da Índia e vice-versa.

É neste recorte histórico que conheceremos a pequena Nisha e o seu diário, ganhado de presente pelo seu amigo e cozinheiro da família, Kazi. Seus registros são cartas para sua mãe já falecida e através de suas entradas que autora irá desenvolver a história, expondo através da perspectiva de uma criança de 12 anos a violência e crueldade desta realidade. Um cenário em que, o local onde ficava a sua casa não é mais um lugar seguro para ela, seu irmão Amil, seu pai e sua avó e agora eles precisam rumar para um local completamente estranho para recomeçar.

Para Nisha, que sempre foi muito reservada, é difícil de entender os reais motivos deste cenário e porque hindus e muçulmanos estão brigando tanto entre si. É através desta dura jornada que Nisha irá descobrir mais sobre a qual lugar pertence e sua verdadeira identidade.

Por que as pessoas estão lutando? Por que tudo não pode continuar como era antes? É interessante perceber a personagem em conflito sendo ela filha de hindu e muçulmana, ainda mais quando entendemos sua relação com Kazi, que é também muçulmano. Tudo isso na cabeça de Nisha, os obstáculos e os perigos que ela e sua família enfrentam, é um turbilhão de emoções e será com sua doce e inocente narrativa que seremos apresentados aos turbulentos desdobramentos políticos da Partição da Índia e como, pelo menos um milhão de pessoas pagaram com a vida pela simples esperança de encontrar um lar.

Tendo isso como ponto central da trama, a cada dia conheceremos mais e mais da nossa protagonista e como ela acabou se conectando muito pouco com seus familiares, com exceção do seu irmão Amil. Os dois tem seu próprio modo de se comunicar com as pessoas e com o mundo a sua volta. Amil tem dificuldade de aprendizado, mas se expressa muito bem através dos seus desenhos e isso é passado de uma forma muito sensível pela autora para nós leitores. E Nisha, apesar de termos contato com seu próprio diário pessoal, onde cada sentimento está sendo registrado, entendemos que ela se expressa melhor através da comida.

Não se esqueça do que ensinei a você. Cozinhar sempre une as pessoas.

A autora descreve com riqueza de detalhes muitos pratos e receitas que aparecerão no livro, o que só torna leitura mais gostosa, representando a gastronomia de uma cultura tão rica e tão distante da nossa. Ao final do livro há um glossário com várias expressões usadas ao longo da narrativa e todos os significados de muitos desses pratos que farão parte do cotidiano de Nisha.

Ao final da leitura vamos percebendo a relação de Nisha com sua família amadurecendo, até mesmo a lembrança da sua mãe, viva através do seu diário. Ela acabará conseguindo desenvolver uma relação melhor com sua avó, compreender melhor seu pai, que sempre foi muito rígido e distante e até compreender melhor seu irmão gêmeo, que sempre foi diferente. Acho que a beleza do livro está também nesses pequenos detalhes sensíveis.

O Diário de Nisha é inspirado na história familiar da autora. Seu pai, quando era pequeno, realizou esta travessia com sua família e também precisou recomeçar sua vida em um lugar estranho. Esta leitura se prova não só importante para aprendermos mais da luta de um outro povo, mas também como nos faz abrir os olhos sobre as dificuldades que refugiados sírios continuam passando atualmente.

Eu recomendo demais a leitura, é uma história muito bonita, sensível, densa por seu significado e pelo modo que afeta nossos corações, nos despertando empatia e amor pelo próximo. Sutilmente a autora vai tecendo a sua obra uma discussão sobre diferenças e preconceito, algo tão relevante e válido para os dias de hoje. O mundo precisa de mais amor e história como a de Nisha de outros milhares de refugiados reacende a nossa vontade de lutar por um lugar mais pacífico para se viver.

  • The Night Diary
  • Autor: Veera Hiranandani
  • Tradução: Débora Isidoro
  • Ano: 2019
  • Editora: Darkside Books
  • Páginas: 288
  • Amazon

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