Foi por meio da leitura da primeira frase, pertencente ao primeiro parágrafo de Comer, Rezar, Amar que me apaixonei perdidamente pela escrita carismática e adoravelmente humana de Elizabeth Gilbert. Ao demonstrar verdadeira coragem perante a exposição de um período delicado de sua vida, impulsionando leitores a exercitarem a empatia na mesma medida em que sentiam na pele suas mensagens e ensinamentos, suas reflexões e anedotas, a autora me permitiu adentrar um mundo literário totalmente novo. Porém, da mesma forma, ela conquistou uma leitora desconhecida que torce por sua felicidade tanto quanto uma verdadeira amiga.
Se Comer, Rezar, Amar possibilitou que eu conhecesse uma autora talentosa, humana e verdadeiramente disposta a transformar a experiência de leitura em algo único, acolhedor e significativo, foram todas as obras que ousei conferir em seguida que determinaram a extensão de meu amor.
Essa foi uma das maiores surpresas da minha vida – o afloramento do amor e do senso de proteção por todas as mulheres […]
Com a leitura de Comprometida percebi as diversas maneiras com que a vida e carreira da autora interligam-se à suas histórias, suas narrativas, seus relatos de ficção e não ficção, oportunizando a construção e lapidação de um talento único que transpira vida, não importando o formato. Através da leitura de Grande Magia recebi a chance de alterar profundamente minha concepção e relação com a criatividade. Enquanto devorava as páginas de O Último Homem Americano, refleti sobre o cuidado, humanidade e paixão da autora pelo universo de escrita, pelo delineamento de narrativas, mas também pelas mensagens e lições que podemos encontrar nos mais diversificados temas, gêneros e interconexões. Contudo, foi apenas quando finalizei o adorável, delicado e curioso A Assinatura de Todas as Coisas que me deparei com o talento peculiar da autora para a construção de narrativas ficcionais.
Tendo acompanhado a trajetória literária e, dentro de determinados limites, pessoal de Elizabeth Gilbert, não pude conter a ansiedade, curiosidade e expectativas para com a publicação de Cidade das Garotas, seu novo romance histórico. A narrativa ficcional nasce juntamente à promessa de presentear os leitores com uma história divertida e cativante, tão sedutora e adorável quanto a própria Nova Iorque dos anos 1940. Todavia, o enredo delicado, encantadoramente humano e verdadeiramente tocante de Elizabeth Gilbert nasce após uma dolorosa perda e, na mesma medida em que demonstra a paixão da autora pela vida, pelo processo de pesquisa e escrita criativa, acaba por delinear, também, reflexões, pensamentos e mensagens que remetem ao período vivenciado após o falecimento de Rayya Elias, sua esposa.
É em meio a este contexto complexo e delicado, às expectativas e carinho de uma leitora, bem como aos eventos vivenciados pela autora ao longo do processo de pesquisa e escrita, que conheceremos o mundo, a mente e a trajetória de vida de Vivian Morris.
A moça de dezenove anos, recentemente expulsa da requintada universidade feminina na qual diversos membros de sua abastada família adquiriram formação, apresenta-se como decepção para os pais, um verdadeiro caso perdido. Buscando uma maneira de distanciarem-se da filha insolente, ao mesmo tempo em que lhe oferecem uma nova perspectiva de futuro, os pais a encaminham para os cuidados de tia Peg, dona de um teatro decadente localizado no coração da efervescente Nova Iorque. Seguindo viagem com apenas alguns pertencentes além de sua fiel máquina de costura, Vivian Morris, a até o momento ingênua, alienada e equivocada moça de família abastada não terá seu caminho marcado, somente, por um verdadeiro e tocante amor – como a sinopse do livro dá a entender.
Nossa protagonista ingressará, sim, em uma verdadeira jornada de amadurecimento, deparando-se com oportunidades de confrontar seus pensamentos e certezas na mesma medida em que descobre novas maneiras de compreender o mundo. Ao longo de sua trajetória, permeando suas confusões, vontade de ser reconhecida, infiltrando-se nos acontecimentos imprevisíveis da vida, ela recebe chances de alinhar-se a sua verdadeira vocação, encontrando pessoas que confiam em seu potencial e, aqui está algo precioso, permitem que edifique sua carreira com base na união. Como qualquer pessoa viva neste mundo, Vivian comete erros imensos, sofre com as consequências de seus atos impensados, percebe a importância de viver conforme sua essência. Mas, acima de tudo, ela nos demonstra de diversas formas o valor da relação leal, acolhedora, companheira, amorosa e verdadeira entre mulheres, sejam elas amigas, irmãs, tias ou colegas de jornada.
Com uma delicadeza admirável, habilmente interligada a momentos divertidos que evocam a efervescência da Nova Iorque dos anos 1940, além do brilho, cores e magia de um teatro que ousa enfrentar tempos difíceis, Elizabeth Gilbert demonstra o mais belo amadurecimento perante a construção de narrativas ficcionais. O equilíbrio entre a beleza e orgulho das coristas, os figurinos encantadores do teatro, os amores incontroláveis da juventude e, do outro lado do espectro, o crescimento da protagonista, as duras e preciosas lições apreendidas, bem como as consequências difíceis da guerra ressaltam cuidado ao longo do processo de escrita, além de exemplificar como uma obra pode transbordar sentimentos e reflexões ao mesmo tempo em que entretêm o leitor com um mundo fascinante.
O profundo processo de pesquisa, marca registrada da autora em quaisquer que sejam suas obras, unifica-se de maneira harmoniosa ao delineamento da narrativa, assim como ao estabelecimento de contextos e personagens pertencentes à trama. O interessante, considerando esta característica da obra, é que com pouquíssimo esforço de leitura obtemos a chance de compreender visões equivocadas de personalidades abastadas para com habitantes de grandes centros urbanos, observamos o preconceito perante escolhas sexuais de mulheres, mas também sua libertação e afronta às regras impostas pela sociedade. Ao longo das 421 páginas deste livro reconheceremos os mais diversificados desafios enfrentados pelas mulheres dos anos 40, 50 e 60, porém, na mesma medida, acompanharemos suas conquistas, suas habilidades de contornar e mesmo alterar as regras do mundo para que atinjam suas necessidades e expectativas. Como Vivian Morris destaca adoravelmente, sua gente esteve primeiro em diversos patamares e situações, demonstrando a possibilidade de manter-se único e verdadeiro num mundo que exige que você se cale ou siga por caminhos determinados.
Juntamente a variedade de elementos e mensagens expressas ao longo de suas páginas, Cidade das Garotas destaca-se por evocar, de forma crescente e admirável, um espirito de irmandade entre personagens femininas. Com maturidade e conhecimento de causa, a autora nos demonstra relacionamentos leais, respeitosos, acolhedores e carregados de companheirismo entre mulheres de diversas faixas etárias, fundamentadas nas mais variadas opiniões, provenientes dos mais inusitados e peculiares moldes. É esta defesa crescente das boas relações entre mulheres, unida a delicadeza de mensagens e reflexões sobre perda, amor, luto e esperança que, sinto em meu coração, remetem as lições apreendidas pela autora ao longo de seu relacionamento, bem como após o falecimento de Rayya Elias.
O cuidado extremo, a doce habilidade empregada na modificação do rumo da narrativa por volta da metade do livro, além da mudança sutil de atmosfera, garante que os leitores observem um rumo inesperado e gratificante para a história. Contudo, a vasta gama de lições, mensagens e tocantes reflexões sobre o amor, relacionamentos, amizade, perda e tantos outros elementos essenciais a existência humana possibilitam que o livro atinja um nível muito mais profundo do que se mantivesse o foco somente no divertimento, luzes, cores e peculiaridades da época.
São todos esses aspectos que elevam o nível de Cidade das Garotas e o fizeram transformar-se em uma das minhas obras preferidas da autora. É por sua escrita impecável, pela narrativa bem fundamentada e delicadamente construída, além de todos os sentimentos evocados por suas páginas que classifico o livro como um dos mais profundos, leves, delicados, divertidas e adoráveis já escritos por Elizabeth Gilbert. Quando a vida de uma escritora se interliga de maneira sutil, misteriosa e verdadeiramente encantadora à sua obra de ficção, transbordando vida e sentimentos pelas páginas do livro concluído, vale a pena arriscar na leitura, ousando receber um dos presentes mais belos que a mente da autora já foi capaz de produzir!
- City of Girls
- Autor: Elizabeth Gilbert
- Tradução: Débora Landsberg
- Ano: 2019
- Editora: Alfaguara
- Páginas: 421
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