A fim de compreendermos a trajetória de vida de Robert Louis Stevenson, autor de O Médico e o Monstro – obra que, acredito, trata-se da mais conhecida pelos leitores brasileiros – é necessário voltar o olhar para eventos e encaminhamentos transcorridos antes de seu nascimento. Foram as escolhas de seus antepassados, bem como a história de sua família que, direta ou indiretamente, delinearam grande parte dos acontecimentos da vida do escritor, além de possibilitarem sua formação enquanto pessoa crítica e sonhadora.

Antes de tudo

Nossa história tem início com um contrato fechado entre o bisavô de Robert Louis Stevenson e o Parlamento Britânico, no final do século 18. O acordo envolvia a supervisão da construção de, pelo menor, quatro faróis dispostos em diversas localidades da costa escocesa. O intuito deste contrato era transformar a costa em ambiente protegido e seguro para a locomoção de barcos e navios, evitando naufrágios e acidentes que, ao longo de muito tempo vinham marcando a narrativa naval escocesa. Contudo, o contrato permitiu que a família Stevenson ingressasse no lucrativo ramo da engenharia e construção de faróis, definindo, portanto, o cunho profissional de todos os descendentes do felizardo bisavô.

Ao longo de 1850, ano de nascimento do pequeno Robert Louis Stevenson, o coletivo familiar havia construído aproximadamente 30 faróis ao redor de toda a costa escocesa e, ao contrário do que poderiam imaginar os leitores atuais, o ramo estava muitíssimo longe de atingir um período de estagnação. Muitos trechos de praias traiçoeiras ainda tiravam vidas e naufragavam navios devido à falta de visibilidade e direcionamento. Consequentemente, com o passar dos anos a família Stevenson não apenas adquiriu status social e comercial, como acumulou capital e conhecimento especializado. O próprio pai do recém-nascido, engenheiro por profissão e escolha de vida, tornou-se especialista em lentes de faróis, tendo efetivado diversas melhorias nas lentes produzidas pela família e, transformando suas lentes em uma das mais precisas, poderosas e flexíveis do mundo.

Para além do ramo profissional trilhado pela família Stevenson, o próprio contexto escocês percebia-se marcado pelo pensamento racionalista e industrial, caracterizado pela meritocracia e pela certeza inquestionável de que o trabalho duro levaria qualquer – ênfase no qualquer – indivíduo ao sucesso, prosperidade, felicidade e senso de propósito. Em meio a estes princípios observa-se também a forte influência do protestantismo europeu, movimento religioso que crescia não somente no velho continente, mas espalhava-se por terra e mar, chegando a América do Norte e transparecendo em obras como Mulherzinhas, de Louisa May Alcott.

Formação e saúde

Assim, proveniente de uma família cuja trajetória profissional possibilitou o crescimento financeiro, social e comercial de seu coletivo; tendo crescido em uma sociedade onde acreditava-se que possuir um trabalho digno e honrado, valorizado, útil e considerado relevante (de acordo com padrões que ainda permeiam a mentalidade contemporânea), além de deparar-se com uma educação muitas vezes focada somente no aspecto científico, lógico e matemático, não surpreende que, muito antes de tornar-se um escritor, Robert Louis Stevenson tenha sido direcionado para o curso de engenharia.

Ainda que as atividades profissionais da família direcionem a formação e início de carreira de Robert Louis Stevenson, é sua saúde quem ditará diversas escolhas e percursos futuros. O garoto de condição frágil enfrentou, ao longo de uma época em que a medicina desvendava alguns dos principais mistérios que hoje desconsideramos ou esquecemos, doenças como catapora e coqueluche. Apesar de enfrentar bravamente os desafios que surgiram no período de sua infância, as lutas travadas deixaram para trás um menino constantemente atormentado por fortes febres, além de sérios problemas pulmonares.

Embora os detalhes ressaltados até o momento não delineiem o percurso de Robert Louis Stevenson perante o mundo das publicações literárias, muito menos informem características e desafios enfrentados ao longo de sua carreira, eles informam tudo aquilo que precisamos saber acerca do contexto de onde surgiu o autor. Uma vez reconhecidos estes elementos, que, possivelmente serão retomados logo mais, podemos ingressar e, na medida do possível, se aprofundar no período que firmou e delimitou o início da carreira do autor, período este em que, para satisfazer os anseios e expectativas da família, ingressa, no outono de 1867, no curso de engenharia da Universidade de Edimburgo.

Estátua em homenagem ao autor, implantada na cidade de Edimburgo.

A fim de distanciar-se de realidades em que jovens não possuíam outra escolha a não ser tornarem-se aprendizes, recebendo, portanto, conhecimentos e materiais necessários para trabalhar e ingressar no famoso “mundo do trabalho”, a Escócia reconhecia-se como um dos primeiros países a estender o acesso à educação superior para os mais diversos membros da sociedade. Suas universidades, através de projetos e estratégias que não cabe a mim elucidar, garantiu a formação de jovens pertencentes à classe alta, média e, de maneira surpreendente para os preceitos da época, estendendo-se até os membros mais pobres da comunidade. Reconhecendo o elitismo da educação superior europeia, transferida mais tarde para o próprio Brasil, este fato, por mais complicado e repleto de nuances históricas que seja, surpreende o leitor e demonstra um pouquinho mais do mundo vivenciado pelo aspirante a escritor.

Embora os princípios educacionais que fundamentavam a Universidade de Edimburgo estivessem distanciados da construção de conhecimentos e indivíduos especializados, permitindo aos estudantes o contato com conceitos matemáticos e lógicos, teorias pertencentes as ciências naturais e, ainda, discussões acerca das línguas clássicas e filosofia, Robert Louis Stevenson demonstrava pouquíssimo interesse nas principais matérias de seu curso. Ele não comparecia a diversas aulas; deixava a sala de maneira estrondosa, demonstrando seu descontentamento perante a forma com que as disciplinas eram delineadas; ignorava os conselhos de seus professores e familiares. Porém, seu comportamento rebelde e boêmio não permitia transparecer que, no fundo, o jovem absorvia grande parte dos conhecimentos referentes ao campo da engenharia, linguística e filosofia, garantindo, assim, não somente que seu pai lhe garantisse um emprego como negociador e supervisor na construção de faróis, mas que seus primeiros ensaios fossem escritos e publicados.

Jornada como escritor

Seus primeiros textos direcionam-se a reflexões acerca da engenharia, das ações e pensamentos de engenheiros, além da defesa de que o campo é capaz de seguir além da mera lógica construtiva implantada fortemente no método de pensamento dos profissionais. Contudo, é somente quando finaliza seus estudos e enfrenta a família, afirmando que não trabalhará como engenheiro, que os primeiros ensaios referentes a produção literária começam a surgir. Em 1873 a revista The Portfolio publica um texto intitulado Roads, primeira reflexão do jovem autor acerca da produção literária. Aqui, Robert Louis Stevenson destaca e defende o talento de escritores como Victor Hugo quando da construção de romances (no sentido da forma de escrita e não do foco da narrativa), ressaltando como suas histórias são capazes de conectarem o leitor a ficção, instigando-os a acompanhar e vibrar com cada novo capítulo.

A publicação de Roads direciona a mente do escritor a construção de novos textos e ensaios em defesa do romance. Com certa medida de paixão e posicionamento teórico, as próximas publicações do autor abordam desde aspectos da construção do romance até a relação entre humanidade e ficção. Distanciando-se do realismo, o jovem defendia que a ficção, ainda que por muitos considerada livre de conexões com a realidade, baseia-se em pensamentos lógicos que, como todo autor profundamente compreende, em suas abstrações, fantasias e características específicas, permitem uma aproximação e elucidação da realidade como poucos romances realistas, segundo Stevenson, eram capazes de realizar.

No ano de 1873, enquanto escrevia ensaios e refletia sobre o romance, Robert Louis Stevenson também enfrentava complicações em seu estado de saúde. É neste período que, sem tomar conhecimento, alinham-se os fatores dos eventos que modificariam sua vida para sempre!

Os médicos, segundo preceitos e teorias da época, indicavam ao autor que escolhesse climas quentes e próximos ao mar ou secos e frios afim de evitar o agravamento de seu estado. Deste modo, inicia-se para o autor uma jornada constante de viagens que, como relata em seu texto Ordered South, publicado em 1874, visavam muito mais do que o encontro de aventuras e a apreciação de belas paisagens, mas sim a sobrevivência de um ser que convivia diariamente com crises pulmonares. Ignorando as forças daquilo que poderíamos denominar como destino, o autor se direciona para uma espécie de colônia localizada em Grez, na França. Ali, o jovem doente de 26 anos conhecerá Fanny Vandergrift Osbourne, mulher de 36, casada, que realizava uma viagem pela França afim de distanciar-se do marido infiel e de seu casamento infeliz. Como observado em tantas outras narrativas, reais ou fictícias, não demora muito para que Fanny e Robert se apaixonem e estabeleçam-se como casal.

Fanny Vandergrift Orbourne

O relacionamento perdura por dois anos, porém, é interrompido quando o marido insatisfeito de Fanny ordena seu retorno, ameaçando cortar todo o auxílio monetário que lhe prestava. Em 1878 a mulher apaixonada segue para os Estados Unidos com o intuito de finalizar sua relação com o marido, deixando para trás um Robert desesperado e infeliz.

Sem a mulher que ama, vivendo a indecisão do futuro e levemente desconectado da produção literária, o jovem inicia uma breve viagem pelas montanhas da França. É deste período de incertezas que nascem seus dois primeiros livros. Seus primeiros livros, ao contrário do que os leitores brasileiros possam imaginar, não se tratam de histórias de terror, mas sim de espécies de diários ou relatos de viagens. An Inland Voyage e Travels with a Donkey não conquistam o grande público, mas garantem o ingresso do autor ao mundo da escrita e publicação de obras longas, completamente diferentes dos ensaios e textos que vinham produzindo até o momento.

Ida para os Estados Unidos

Em 1879, um ano após a partida de Fanny para os Estados Unidos, Robert recebe uma carta que altera drasticamente seus planos e estado psicológico. Apesar de pouco se saber acerca do conteúdo da carta, reconhece-se que sua mensagem alterou profundamente o escritor, forçando-o a dirigir-se para o “Novo Mundo” e enfrentar qualquer situação que se estabelecesse em seu caminho. Assim começa a jornada de Robert para São Francisco, localidade onde pretendia encontrar-se com Fanny para resolverem, juntos, as complicadas situações e consequências provenientes de seu relacionamento.

Sua jornada não foi heroica, fascinante ou encantadora, como muitos autores da época davam a entender ao longo de seus relatos inspirados transmitidos em livros. Com pouco dinheiro, ele não poderia pagar por uma cabine de primeira classe, o que alinhou suas experiências aquelas vividas por tantos outros imigrantes. As condições eram precárias, alguns viajantes ficavam confinados em ambientes livres de ventilação e limpeza, as doenças eram transmitidas com facilidade devido as condições do ambiente. A travessia de navio reduziu consideravelmente a resistência de Robert transformando a segunda etapa da viagem, sua locomoção por trem, ainda mais desafiadora. Cercado por passageiros pobres, doentes, desolados e em busca de melhores oportunidades, Robert sofre com os sintomas da fome, com crises pulmonares e exaustão.

Ao reencontrar-se com Fanny ele já não era o mesmo jovem apaixonado, de saúde frágil e encantado com as belezas do mundo. Ainda que ansiasse por fixar residência nos Estados Unidos, além de retomar o relacionamento com Fanny e vir a conhecer seus filhos, os meses que se seguiram foram destinados a recuperação de sua saúde e busca por melhores condições de vida para sua nova família. É deste momento de necessidade que se apresenta uma proposta inesperada. Ao solicitar auxílio de amigos para que garantissem a elevação dos preços de seus livros na Europa, uma vez que vendiam pouco e não garantiam segurança monetária para a família, a história, de alguma forma inusitada, chega aos ouvidos do pai de Stevenson, quem, por remorso, caridade ou verdadeiro sentimento de paternidade, oferece a Robert o pagamento de 250 libras por ano. A partir deste momento a estrela de Robert Louis Stevenson começa a brilhar!

O primeiro sucesso

Em 1881, ainda sem grandes sucessos publicados, o autor enfrenta dúvidas cruéis e profundas sobre si, sua carreira e suas escolhas, muitas delas, vale ressaltar, provenientes dos próprios moldes e expectativas da sociedade – algo que, acredito, conhecemos muito bem. Contudo, o período de estagnação logo se alteraria pois, ao passarem as férias na chuvosa costa sul da Inglaterra, Robert e seu enteado Lloyd deparam-se com uma ideia maravilhosa. Ao longo de uma tarde qualquer os dois desenharam, com detalhes e diversos debates acalorados, o mapa que viria a garantir o direcionamento e construção de seu livro A Ilha do Tesouro. Pouco sabia Robert que a história de aventuras fundamentada em um mapa produzido com seu enteado, publicada no mesmo ano, garantiria não apenas um acréscimo no fundo monetário da família, como também garantiria a decolagem da careira do autor. O livro foi tão bem recebido que o próprio Jules Verne declarou apreço por sua história e criatividade!

O período também permitiu a criação e publicação de obras como Raptado e O Médico e o Monstro, obra que, acredito, trata-se da mais conhecida e popular entre os leitores brasileiros (novela gótica, com elementos de ficção científica e terror). Muitas outras obras foram publicadas e adquiriram considerável sucesso ao longo deste período, porém, assim como observamos com tantos outros autores e autoras, a grande maioria dos livros escritos pelo autor nunca foram publicados em território nacional ou, em casos específicos, encontram-se descontinuadas e distantes de qualquer previsão de retorno as livrarias.

Uma vez que sua família se via feliz, que seu amor se encontrava ao seu lado, que seus problemas financeiros foram superados, o único grande desafio que ainda assombrava a vida do autor era seu estado de saúde. Poderíamos especular se a travessia de navio e trem para os Estados Unidos não delimitaram a redução da resistência do escritor, porém, nunca saberemos quais fatores foram essenciais para marcar sua trajetória de vida com crises pulmonares e intensas dores. O que sabemos é que, ao viajar para as Ilhas Marquesas, pertencentes a Polinésia Francesa, Robert Louis Stevenson depara-se não apenas com um ambiente propício para passar seus últimos dias na terra ou tranquilizar seu estado de saúde, mas também se percebe encantado pelas pessoas, cultura, paisagens e desafios do local.

Foto tirada após fixar residência na ilha de Samoa.

Residência em Samoa

A primeira passagem pelas Ilhas Marquesas instiga o autor a conhecer outras paisagens e localidades. Porém, é sua curiosidade, encantamento e olhar crítico que o aproxima dos líderes de comunidades que, ao enfrentarem homens brancos cuja mentalidade diminuta os fazia acreditar possuir o direito de tomar qualquer parcela de terra, riqueza e povo que surgisse em seu caminho, acabam se colocando em meio a conflitos muito mais complexos e desafiadores do que poderiam imaginar.

O encantamento pelas ilhas, bem como a amizade firmada com diversos líderes locais, leva Robert Louis Stevenson e sua família a fixar residência em Samoa, no ano de 1889. Ao longo deste período o autor, fortemente envolvido com questões de disputas políticas e absurdos cometidos pelo pensamento imperialista, escreve e publica diversos artigos e ensaios em defesa do povo polinésio. Todavia, quando os conflitos se tornam violentos e diversos olhares poderosos se voltam ao imigrante escocês que defendia ardorosamente o povo polinésio, Fanny oferece ao marido um ultimato: a hora dos artigos e ensaios de cunho político e social chegara ao fim! Os comentários atingem o autor e possibilitam uma mudança de abordagem e temáticas. Após o ultimato de Fanny, Robert Louis Stevenson retorna ao universo da ficção e, em 1892, publica The Wrecker, história elaborada em processo de coautoria com Lloyd, seu enteado.

Ao contrário dos trabalhos anteriores, The Wrecker, ambientado nas Ilhas Marquesas e fundamentado em uma atmosfera de mistério e drama, delineia-se como uma espécie de romance histórico e jornalístico, apresentando todo um processo de pesquisa e reconhecimento dos elementos socioculturais que, até o momento, pouco eram empregados nas ficções construídas pelo autor. A obra de ficção logo é complementada por A Footnote to History, livro que busca evidenciar, por meio de informações, pesquisas e relatos, os desafios, injustiças e crueldades enfrentados pelo povo de Samoa ao longo do que, ainda hoje, muitos classificam como “período de colonialização”.

Morte

Dois anos após publicar livros, artigos e ensaios em defesa do povo, cultura e comunidades da ilha de Samoa; após publicar ensaios desconhecidos e obras de sucesso; após atravessar mar e terra afim de passar o resto de sua vida ao lado da mulher que amava; após enfrentar anos de pobreza e uma doença que o acompanhou ao longo de toda a vida, Robert Louis Stevenson dá seu último suspiro. O escritor falece no dia 3 de dezembro de 1894, deixando para trás uma carreira, lista de obras e trajetória de vida curiosa, inspiradora, inusitada e, ao contrário do que muitos poderiam imaginar, verdadeiramente aventureira. Ele escreveu diários de viagens; ensaios sobre literatura, engenharia e produção literária; criou histórias de aventura, fantasia e horror; ousou pesquisar e evidenciar injustiças, bem como defender povos que sofreram nas mãos de outros povos e, por esses e tantos outros motivos vale a pena ouvir o que este homem de saúde frágil e mente afiada tinha a dizer.

PARTICIPE

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