Muito refleti antes de iniciar o processo de escrita da resenha. Assim como em tantas outras resenhas, necessitava, enquanto leitora crítica e metida a estudiosa, optar por um direcionamento, por uma estratégia capaz de, não somente apresentar um clássico da literatura, mas também detalhá-lo e aprofundá-lo de maneira a demonstrar outros olhares perante uma obra tão delicada e valiosa.
Então devemos admirar coisas e pessoas que detestamos simplesmente porque não somos belles e milionárias?
Foi deste modo que, sem qualquer previsão ou intenção, deparei-me com uma antiga discussão da teoria literária. Enquanto alguns defendem que os leitores devem conhecer o contexto histórico que inspirou e possibilitou a criação da obra, iniciando o processo de leitura com base nestes conhecimentos e, de forma alguma, interpretando o que recebe de acordo com os moldes e perspectivas atuais, outros afirmam que leitores contemporâneos interpretarão toda e qualquer obra com base em visões do presente, carregando consigo os valores que o fundamentam para junto de livros escritos em épocas passadas. Embora acredite que o meio termo, neste e em tantos outros casos, indique o caminho para solucionar a questão, sinto a necessidade de dar início a esta resenha por meio do aviso que, aqui encontraremos sim as interpretações e reflexões de uma leitora contemporânea perante um livro escrito 1868.
Ainda que conheça alguns dos detalhes e características referentes ao contexto histórico que fundamenta a construção de Mulherzinhas, obra de Louisa May Alcott, não posso ignorar posições e preconceitos velados expressos nesta história. Do mesmo modo, não posso deixar de aproveitar a oportunidade de destacar discussões tão relevantes ao momento presente por se tratar de uma interpretação atual proporcionada após a finalização de um livro antigo. Por estes motivos, criticarei alguns aspectos da história sim, mas também defenderei seus pontos delicados e encantadores, oferecendo, por fim, aos nossos leitores a oportunidade de refletir sobre tudo o que escrevi nesta resenha!
Em Mulherzinhas acompanharemos a trajetória, desafios, amores e aprendizados de quatro jovens pertencentes à família March. Enquanto Meg, Jo, Beth e Amy se lamuriam devido ao frio natalino; enfrentam a saudade e ausência do pai, quem serve, ou, como a autora frequentemente destaca, cumpria seu dever na Guerra de Secessão; quando anseiam por presentes que não podem possuir devido a condição financeira da família e, principalmente, ao longo de cada evento cotidiano e comentários proferidos pela mãe das garotas, observaremos acontecimentos, escolhas e consequências que constroem toda uma vida.
É disto que se trata a obra, ainda que não se limite a isto. Aqui perceberemos as lições apreendidas por estas jovens sonhadoras, ambiciosas, benevolentes, caridosas e explosivas, nos mais diversificados momentos e aspectos de suas vidas. Com enorme carinho depositado na figura de cada uma das irmãs, Louisa May Alcott explora suas personalidades e defeitos, ressaltando os eventos que permitiram seu crescimento e amadurecimento, além de suas transformações em melhores versões de si mesmas.
Contudo, na mesma medida em que acompanhamos acontecimentos trágicos, apaixonantes, tristes e cativantes, torcendo e se conectando com cada uma destas personagens adoráveis, também observaremos o cunho prescritivo da autora. Presente do início ao fim da narrativa, a necessidade de transmitir lições inspiradas nos moldes daquilo que se acreditava tratar-se do mais respeitável e valioso comportamento de moças jovens, mulheres independentes e esposas esforçadas, acaba por frustrar o leitor devido às pequenas injustiças sutil ou evidentemente ressaltadas pelas prescrições da autora. Mesmo que as pregações religiosas ganhem terreno na narrativa, são os comentários acerca de como uma esposa deve agir, de como uma jovem deve se portar, de quais devem ser os sonhos, anseios e comportamentos de mulheres e mulheres que entristecem o leitor mais crítico.
Ainda que ressalte as diferenças entre o contexto social e condição das mulheres dos Estados Unidos, defendendo o quanto são livres, independentes e trabalhadoras, a autora – como poderíamos esperar devido ao período histórico que lhe deu origem – nega para suas heroínas a chance de uma nova e inusitada perspectiva. Ao contrário do que, acredito, será efetivado na adaptação cinematográfica de Greta Gerwig, aqui não teremos mulheres ingressando em novos círculos, ousando trilhar carreiras que, por séculos, lhe foram proibidas. Aqui teremos, uma vez mais, a felicidade de encontrar um marido e um amor verdadeiro. E, desde já afirmo que não existe absolutamente nada de errado com isto, mas, estaria me silenciando se não destacasse este aspecto para os leitores, assim como, estaria negando minha paixão por este tipo de livro se dissesse que não os amos.
Muito pelo contrário! Seguirei amando estas obras maravilhosas, escrita por mulheres ao longo de todo e cada período histórico antecessor ao nosso. Seguirei amando estas heroínas apaixonadas, de personalidade forte, que encontram maridos encantadores e um adorável final feliz. Mas acredito, também, que faz parte da leitura crítica compreender estes detalhes, criticá-los sim, mas ser capaz de amar uma obra mesmo reconhecendo seus problemas quando inserida nos olhares de uma sociedade atual.
E, uma vez que estamos falando em amor e todos os aspectos maravilhosos destas histórias que nos fazem suspirar, torcer, chorar e vibrar de alegria com seus desfechos delicados, não poderia deixar de destacar as características positivas, tocantes e instrutivas deste livro.
Embora delineie uma narrativa prescritiva, observamos ao longo de toda a obra, para além da pregação inspirada em preceitos religiosos ou das expectativas depositadas sobre os ombros de boas moças, as mais verdadeiras lições e mensagens. Aqui aprenderemos a valorizar cada pessoa, sua personalidade, suas crenças, suas diferenças. Compreenderemos que, antes de criticar características intrínsecas a uma pessoa, antes de condenar ações e clamar pela mudança de indivíduos únicos, poderemos utilizar o mesmo tempo e energia aprendendo com eles e demonstrando onde podem melhorar. Aqui reconheceremos que pessoas mudam, sonhos mudam, ambições mudam e, desde que não nos obriguem a abandonar nossos sonhos, a trocar a vida que ambicionamos pela vida que esperam de nós, não existe erro ou julgamento algum a ser direcionado aqueles que simplesmente mudaram de ideia. Aqui seremos levados a apreciar a bondade, o carinho, a família, o amor, as amizades e tantas outras coisas que, somente um livro de 675 páginas para dar conta de todos os assuntos, mensagens e lições delineadas em Mulherzinhas.
Por fim, resta dizer que Mulherzinhas é uma janela encantadora, adorável e curiosa para um contexto histórico razoavelmente distante. Para os olhares atuais, a história de Louisa May Alcott ressalta costumes, normalidades, eventos e pensamentos que muito criticamos. Porém, não se deixe levar tão profundamente pela angustia que o livro pode transmitir por meio de suas pequenas e sutis injustiças. Reconheça seus defeitos, mas não deixe de apreciar as personalidades destas irmãs, não deixe de sentir suas dores, alegrias e perdas. Observe e carregue consigo as lições mais preciosas e, se deixe tocar por cada capítulo desta história pois, como muito defendo, existe um sentimento gostoso que somente romances de época (escritos na época) conseguem evocar e, Mulherzinhas trata-se de um exemplo maravilhoso deste fato.
- Little Women
- Autor: Louisa May Alcott
- Tradução: Diego Raigorodsky
- Ano: 2019
- Editora: Martin Claret
- Páginas: 675
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