Ao contrário de muitas pessoas que comentam e criticam livros neste maravilhoso mundo da internet, não conheço as nuances e diversidades do gênero da fantasia. Da mesma forma, nunca estudei suas características e, por este motivo, não reconheço nomes de autores e autoras, não sei dizer se uma obra é relevante para o todo ou trata-se apenas de um exemplar interessante, porém, sem grandes novidades. Quem acompanha meus textos aqui no Estante Diagonal provavelmente sabe que meu campo de estudo é a ficção científica e a distopia. Amo os gêneros com todo o meu coração e irei pesquisa-los, entende-los e defende-los para o resto de minha vida, mas, não posso negar que também gosto de me aventurar por outros territórios da literatura e, foi por conta destas aventuras que me deparei com O Aprendiz de Assassino.
A famosa fantasia épica escrita por Robin Hobb – que, acreditem, não sabia tratar-se de uma escritora chamada Margaret Astrid Lindholm Ogden – nos apresentará a trajetória de Fitz, um garotinho que, no início da narrativa possuía apenas seis anos. Fitz é filho do príncipe Chivalry Farseer, herdeiro do trono de Torre do Cervo, que, por sua vez, é filho de Shrewd Farseer, o rei que comanda toda a extensão dos Seis Ducados. Contudo, Fitz é um bastardo e, por inúmeros motivos que serão revelados ao longo da leitura, é deixado aos cuidados de Burrich, homem de confiança do príncipe Chivalry e aquele que cuida dos cães, cavalos e falcões da realeza.
Os homens não sofrem a perda de um ente querido do mesmo modo que os cães. Mas nós sofremos por muitos anos.
Dentro deste contexto inicial, descobriremos que o príncipe Chivalry nunca procurou estabelecer qualquer tipo de contato ou relacionamento com Fitz e que, para desalento de grande parte da comunidade dos Seis Ducados, abdicou do trono e retirou-se para uma área amena cercada por vinhedos onde vive com a esposa. Compreenderemos, também, dentre uma infinidade de informações relevantes que se interligam na medida em que a narrativa avança, que os Seis Ducados sofrem com constantes ataques dos chamados Navios Vermelhos. Provenientes de terras distantes, os tripulantes destes navios pilham, matam, destroem e aterrorizam diversas aldeias pertencentes ao território dos Seis Ducados. Como qualquer leitor poderia imaginar, estes ataques constantes não apenas criam dificuldades e desafios para os aldeões que sofrem com os entes assassinados ou com as ovelhas perdidas, eles reduzem a confiança do povo no reino, além de reduzirem o alimento que seria estocado para os meses mais frios.
Assim retornamos a Fitz. No momento em que o garotinho de seis anos chega a Torre do Cervo as nuances deste contexto sócio político encontram-se em pleno desenvolvimento. Para o menino confuso que é entregue a um desconhecido, nada do que ressaltei pode chamar a atenção, entretanto, na medida em que ele cresce, a realeza passa a enxerga-lo com outros olhos, observando em sua existência a oportunidade de transformá-lo em peça importante no jogo de poder que transcorre ao longo das páginas de O Aprendiz de Assassino. Deste modo, o primeiro livro da trilogia demonstrará para o leitor o crescimento, amadurecimento e construção do personagem principal.
Por meio de relatos do próprio personagem perante sua trajetória de vida acompanharemos suas aventuras e desafios. Descobriremos que é capaz de conectar-se com cães e ver, sentir e compreender o mundo por seus olhos; observaremos seu aprendizado juntamente a Burrich e todos os professores que entraram e saíram de sua vida; conheceremos o momento exato em que lhe ofereceram ensinamentos para tornar-se o assassino do rei; acompanharemos suas incursões no Talento, uma espécie de poder mágico ou mental que flui pelo sangue real.
Existe uma complexidade e uma simplicidade maravilhosa em O Aprendiz de Assassino. Enquanto buscamos compreender as tramas políticas, os segredos e traições que podem estar por trás de alguns dos eventos principais da trama, acompanhamos também o crescimento, aprendizado, descobertas, amizades feitas e desfeitas, além das tristezas e alegrias de um garotinho de seis anos que envelhece conforme viramos cada página deste livro. Os mistérios, motivações duvidosas, nuances político sociais, magia e todo e qualquer elemento que compõem universo dos Seis Ducados apresentam uma complexidade instigante, uma vez que permitem com que o leitor elabore as mais diversas teorias sobre o que existe além-mar, sobre possíveis traições no reino e na corte, sobre a origem de determinados personagens, sobre todo o plano macro que, a meu ver, transformam a leitura em algo mais.
A simplicidade, por sua vez, se destaca pelo fato de que aqui, para além de toda a construção de universo e dos jogos de poder, encontramos uma história sobre crescimento, sobre amadurecimento, talvez o que muitos teóricos chamariam de coming of age. Embora Fitz seja, ao mesmo tempo, personagem e narrador, ainda que encontremos em sua imagem os direcionamentos para exploração dos aspectos macro deste mundo, acompanharemos sua trajetória de vida.
Ao brincar com o mundo do personagem e o mundo da narrativa, Robin Hobb constrói uma obra intrincada, instigante ao seu próprio modo, tocante e encantador. Se permitem minha alfinetada, não se trata do que “uma obra de fantasia deveria ser”, mas sim de um exemplo importante do que acontece quando mulheres encontram oportunidades para inserir-se em campos que, talvez até certo tempo atrás, não lhes era facilitado o acesso. Ao delimitar um ritmo de leitura que considero mediano, já que a leitura exige atenção aos detalhes, aos eventos, aos personagens, aos comentários e a cada elemento que complementa a narrativa, a autora deposita surpresas e reviravoltas nos momentos certos. Ao surgirem sem avisar e sem qualquer estardalhaço, as descobertas e reviravoltas instigam a leitura de maneira diferente, oferecendo ao leitor algumas das peças necessárias para montar o quebra cabeça que fundamenta este mundo peculiar.
Contudo, muito mais do que mistérios, traições, aventuras, magia e personagens curiosos, encontrei em O Aprendiz de Assassino uma estratégia que muito me agradou e, infelizmente, mas sempre justificado pelo contexto e desenvolvimento da narrativa, algo que nunca aceito com facilidade nos livros que leio.
O que me surpreendeu e deixou maravilhada, completamente embasbacada, foi a habilidade da autora em inserir críticas sociais, comentários feministas e observações acerca de características do mundo real, em especial, sobre condições e comportamento humano. Estas reflexões são inseridas de forma tão harmoniosa, tão intimamente ligada aos eventos da narrativa, que em momentos específicos somente percebia ter lido uma grande mensagem quando estava distante da mesma a pelo menos 20 páginas.
Mas o que me decepcionou, emocionou e provocou o derramamento de lágrimas que forçaram o fechamento do livro por alguns minutos, foi a constante perseguição – e prometo que não entrarei em detalhes para não soltar spoiler – de cães ao longo deste livro. Os eventos são justificados, muito bem embasados pelos acontecimentos, pensamentos de personagens e possíveis consequências de cada amizade e conexão. Mas sou humana e não posso aceitar o que vi. Por mais que entenda os motivos, por mais que compreenda a importância destas perseguições para a construção do personagem e direcionamento da história, não pude ignorar sua existência e, foi por este motivo que escolhi o trecho em destaque no início deste texto. De minha parte, não se brinca com a vida de qualquer animal e nesse quesito Robin Hobb quebrou meu coração.
Não posso falar por todos os leitores, muito menos pelos apaixonados por fantasia, ou aqueles que entendem muito mais desse gênero que, para mim é puro fascínio e descobertas. Ainda assim, afirmo que O Aprendiz de Assassino é uma das obras fantásticas mais encantadoras, que já tive a chance de conhecer. Sua história me fisgou, seu protagonista me cativou de tal maneira que palavras não serão capazes de expressar devidamente, suas reflexões e comentários muito me alegraram, seus mistérios e magia retomaram um sentimento que somente obras de fantasia são capazes de proporcionar.
Com sua escrita Robin Hobb provou para essa leitora ansiosa, um tanto quanto chata – mas só de vez em quando – e metida a estudiosa de literatura, que mulheres podem escrever qualquer tipo de obra, qualquer gênero, o que elas quiserem! E assim deixo aqui minha indicação de que, se como eu você nunca teve a chance de conferir essa história, está na hora de se infiltrar nos domínios do Seis Ducados e descobrir os segredos desta fantasia épica! Agora é torcer para que os próximos livros não demorem muito a chegar.
- Assassin’s Apprentice
- Autor: Robin Hobb
- Tradução: Orlando Moreira
- Ano: 2019
- Editora: Suma
- Páginas: 375
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