Junior não se importa com o passado, nem com o futuro. Sua vida está totalmente no presente. A rotina é segura e confortável. Trabalhar na fábrica, cuidar de umas poucas galinhas, fazer reparos na casa já velha. É o certo. É o ideal. É a única coisa que ele conhece como vida. Ao lado da esposa Hen, seus dias passam devagar, num ritmo lento e agradável. Ele não trocaria isso por nada. Nem por um prêmio de loteria. Ele não moraria na cidade grande novamente. Em seu mundo já completo, não há espaço para outras pessoas. Então é bom que ele e Hen morem tão distantes de qualquer outro ser humano. É bom que eles nunca recebam visitas… até que um dia isso ocorre.
Depois da visita do estranho Terrance, as coisas não são mais as mesmas. Junior não tem mais certeza sobre nada. Ele parece um mero expectador da própria vida. Hen também foi afetada e ele quase não a reconhece. O que aconteceu com a vida deles, com o casamento, com as lembranças, com os velhos hábitos? Ele tem pensado demais em coisas desnecessárias. Mas ele irá lutar com todas as suas forças. Ninguém irá bagunçar sua cabeça dessa forma. Ele não irá permitir. Mesmo que esteja assustado, mesmo que se sinta outra pessoa, mesmo que arrisque tudo o que um dia já conheceu.
Iain Reid e Josh Malerman, separados por um limite geográfico. O tipo de autor que você ou ama ou odeia. Enredos perturbadores, caóticos e cheios de suspense. É assim que eu definiria “Intruso”. A nova obra do autor canadense Iain Reid conquista pela genialidade. A comparação com o autor de Caixa de Pássaros se dá a partir do momento que encontramos no lançamento da Fábrica 231, uma história densa, lenta e totalmente emblemática. Cada pormenor é extremamente importante para o desfecho. Cada sinal, cada linha, cada informação, mesmo que pareça aleatória e desnecessária. Ainda estou em êxtase com o final desse livro. Precisei contar pra uma colega que não é leitora, enchi ela de spoilers. Eu estava transbordando, não dava para guardar aquela sensação de descoberta, aquele fascínio.
Já faz mais de uma semana e minha colega ainda lembra da história, ela menciona o final às vezes. Ela nem leu, porém se sentiu impactada. Eu acho que não conseguirei esquecer. Porém não vou falar mais nada sobre isso. A graça está em desvendar as respostas sozinho, para então encontrá-las fragmentadas, escondidas, simbólicas. Começo pelo desfecho para que você não se desanime com os demais pontos dessa resenha, que precisa ser verdadeira, que precisa ser sincera. A verdade é que é preciso paciência para ler Iain Reid. Ele tem o dom para deixá-lo em expectativa, na mesma proporção que o frustra lentamente a cada virar de página. Você fica ansioso, espera encontrar aquele grande clímax, porém ele nunca ocorre.
A narrativa não passa por grandes evoluções e se mantém no ritmo até o final. O desenvolvimento é simples e poderia ser classificado até mesmo como enfadonho. Mas você continua lendo, porque é praticamente impossível largar. Tem alguma coisa ali, nas entrelinhas, que instiga, que prende, que envolve. Junior é quem narra a história, estamos dentro de sua cabeça o tempo todo, temos apenas sua visão das coisas. Mas até que ponto sua fala é confiável? Essa é exatamente a sensação que a leitura te passa. Desconfiança. O que esperar? É o que você se pergunta enquanto continua a leitura, que mais parece um drama sobre um casamento morno e sem grandes emoções.
Às vezes até boas notícias podem nos alterar psicologicamente. Podem atrapalhar mentalmente as pessoas.
Mas há mais coisas sob a superfície. Não é a relação desgastada entre Hen e Junior. Nem o quanto ele em sua arrogância não percebeu a vida frustrada que esposa levava. Nem mesmo o estranho em sua casa que parece esconder um grande segredo. Junior começa a sair de um torpor mental. Se sente mais consciente. Os questionamentos dos personagens se tornam os seus próprios. O drama ocupa grande parte da história, porém é justamente esse abordar das relações humanas que tornam o enredo tão rico. Iain Reid constrói aqui um panorama fiel, porém cruel, de uma convivência taciturna e tóxica.
As pessoas ficam juntas porque é o esperado, porque é o que sabem. Elas tentam fazer com que dê certo, tentam suportar e acabam vivendo sob algum tipo de anestesia espiritual. Elas continuam, mas estão entorpecidas. E quanto mais eu penso, mais acho que não há nada pior do que viver a vida desse jeito. Distantes, mas juntos. É imoral.
Não há romance, ou amor, ou cuidado mútuo. E o que é um casamento sem essas condições básicas? Quem consegue ser feliz sem a perspectiva de um amanhã melhor? Não vemos Hen narrando sua visão sobre o relacionamento, porém mesmo através das falas de Junior, conseguimos sentir sua frustração, seu desgaste, seu cansaço. É perceptível seu desconforto, seu afastamento. É angustiante. O terceiro personagem desse triângulo não amoroso, Terrance, é assustador de uma forma não óbvia. Sua aura de mistério traz um tom mais perigoso a trama. Mesmo sendo gentil demais, educado demais, sua presença na casa e na vida do protagonista toma proporções cada vez mais escusas. A leitura se torna inquietante e deixa o final ainda mais surpreendente. A dica? Preste atenção desde o início, nada é o que parece ser, desconfie de todos e aproveite a jornada.
- FOE: A novel
- Autor: Iain Reid
- Tradução: Maira Parula
- Ano: 2019
- Editora: Fábrica 231
- Páginas: 288
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