Essa história começa como qualquer outra que tenha o fantástico como o principal ingrediente de sua trama. Ela começa com uma garota, um mapa misterioso, uma galinha de estimação, um governo injusto e uma amizade improvável. Ela começa também com um pai amoroso, uma ilha sem o canto dos pássaros, um labirinto tal qual o mito grego e onde parece existir um monstro ctônico à espera do relógio milenar soar a melodia que antecede o medo.
Em suas páginas, você encontrará a coragem do mais fraco rugindo feito trovões no céu escuro, o que inspirará sem dúvida qualquer temor que você possua. Em seu romance de estreia, Kiran Millwood Hargrave nos presenteia com o doce humor da criança que é forçada a amadurecer antes da hora, mas que o faz com graça e tanta fibra quanto uma deusa romana. Esta é a história de Isabella, de Lupe, de Papai, de Pablo e de todos aqueles que fazem da ilha de Joya sua morada.
Era uma vez… A Garota que Lia as Estrelas.
A arte de devorar livros nem sempre é constante. Vez ou outra surge aquele que te prende à uma cadeira e só te libera quando a última folha é virada, o livro fechado e guardado na estante. E esse é um deles. De forma gradativa, que beira a contação das lendas de outrora, a autora pesca o leitor desde o princípio com uma espécie de névoa mágica que emana das páginas.
Nessa fantasia juvenil, o leitor encontrará um enredo fascinante repleto de referências à mitos gregos conhecidos, personagens complexos desde a galinha cheia de personalidade até o Governador Adori que trata a ilha como se fosse sua por direito, estabelecendo regras mil, fronteiras e fechando portos, A Garota que Lia as Estrelas conta com um ritmo perfeitamente equilibrado que mostra a jornada do herói a qual Isabella é exposta. Desde criança acostumada a ver o pai cartógrafo traçar e dar vida a mapas inteiros, a garota já teve sua cota de dor e perda fazendo com que seu caráter fosse forjado de forma quase inquebrável, o que viria a ajudá-la na trajetória à frente.
Cada um de nós carrega o mapa de nossa vida impresso na pele, na maneira como caminhamos, até mesmo na maneira como crescemos, dizia papai.
Com pitadas de humor e espírito aventureiro, o livro mantém tanto Isa quanto o leitor em uma espécie simplificada dos doze trabalhos de Hércules – semideus grego que buscava se redimir por suas falhas e ao final da jornada ser elevado à sua condição divina – que, como pequenas migalhas jogadas ao vento, condicionaram a garota no caminho certo, onde poderia encontrar a salvação de sua melhor amiga e, por consequência, de toda a ilha de Joya.
Os intrigantes tons e camadas da história trazidos por influência da mitologia grega, incitam o leitor a seguir em frente com a leitura, bem como a inocência investigativa de Isabella. Uma bruma mágica parece cobrir os diálogos e acontecimentos que tomam lugar na ilha, mas em alguns deles a malícia de forças antigas parece estar a ponto de explodir feito um vulcão em erupção o que ajuda a consolidar ainda mais a narrativa construída por Kiran.
Sentimentos de perda e impotência acometem a jovem garota como em vários outros exemplos literários o que me fez perder levemente a euforia pela leitura, por serem tão comumente explorados; como uma jovem Mulan que corta os cabelos, veste as roupas de seu irmão Gabo e parte com os materiais cartográficos de seu pai rumo ao resgate de sua melhor amiga e daqueles outros aprisionados pelo tirano governador da ilha, Isabella inicialmente é tomada pela coragem, mas acaba decepcionando em alguns momentos, cabendo a outros salvarem sua pele e deles mesmos. Como o jovem Pablo e a superficial Lupe, que acaba surpreendendo bastante antes do final da história.
Desde que me recordo, ouvimos o verbete “não julgue um livro por sua capa”, mas você irá concordar comigo quando afirmo o quão bonita e atrativa é a capa desta edição publicada pela Editora Jangada. Não só ela, como as folhas de guarda que apresentam mapas da superfície da ilha de Joya e do seu subterrâneo. Apesar de ares infantis, os pequenos desenhos que adornam as páginas e entradas de capítulos tornaram a leitura mais prazerosa e me vi devorando a história, ansiosa por seu desfecho. Sem dúvida alguma, um ótimo livro para aqueles que buscam uma leitura leve, divertida e com bastante sentido que pode ser finalizado em um dia apenas de tão fluida que é sua escrita.
Se eu pudesse procurar uma palavra para expressar o que foi esta leitura para mim, sem dúvida seria instigadora. De forma linear, Kiran nos mostra que apesar de parecermos frágeis podemos ganhar força se dispostos a correr riscos, que o valor da família e da amizade devem vir em primeiro lugar, que tudo aquilo que é maléfico e destrutivo encontra seu fim, cedo ou tarde, que se perdidos devemos não temer sair em uma jornada em busca de nós mesmos e que, às vezes, os mitos, aqueles passados de geração em geração, até os mais mirabolantes e incríveis, podem vir a ser extremamente factuais.
Apesar do livro ser curto, possuir ares acriançados em certos pontos e a história ter passado por meus olhos como um sopro, durante a leitura me senti ao redor de uma fogueira de acampamento onde pessoas de várias idades se reuniam para ouvir um conto de eras passadas regado por monstros, labirintos subterrâneos, homens ruins e prenúncios de morte, mas também com o poder sólido da amizade e lealdade, quase relembrando o ciclo dos hobbits na jornada divinamente construída por Tolkien.
As estrelas são os mapas mais antigos, os mais precisos. Elas podem dizer onde você está melhor do que uma bússola. Se você aprender a ler as estrelas, jamais se perderá.
A magia que emerge das folhas foi envolvente até o último ponto e o leitor se verá formando inúmeras teorias e reconhecendo referências à mitos, lendas e outras histórias tão antigas quanto a cultura humana. Se você gosta de romances que fazem do, aparentemente, elo mais fraco ser a chave da libertação de algum ciclo vicioso maligno, esta é a história que você deve ler o quanto antes. Afinal, com que frequência vemos uma garotinha entrando nas profundezas da terra com nada além de um mapa e uma lanterna em busca de sua melhor amiga?
- The Girl of Ink & Stars
- Autor: Kiran Millwood Hargrave
- Tradução: Jacqueline Damásio Valpassos
- Ano: 2019
- Editora: Jangada
- Páginas: 264
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