Invisíveis são todos aqueles que residem em Bone. Pobres criaturas infelizes. Esquecidos pela sociedade, pelo governo, pela justiça. As ruas são labirintos tortuosos que escondem segredos sombrios e asquerosos. E nas ruas, casas fantasmagóricas preenchem de cinza os dias solitários daqueles que passarão uma vida inteira sem ter para onde ir. Entre tantas moradas, a casa que devora. A casa que devora possui alma, é vingativa e tem fome. Dia-a-dia consome a jovem Margô, que perdida em sua própria tragédia, não consegue ter esperança. A vida se resume a uma sucessão de ordens e faltas. Lhe falta uma mãe, um amparo, um carinho. Pra onde foi a progenitora e por qual motivo deixou essa casca vazia no lugar? Ela nem lembra mais quem é. A única comunicação permitida na casa que devora são os bilhetes frios que ela encontra na mesa da cozinha. Seu nome, seguido de uma ordem. Compre! Traga! Faça!
Será que mesmo em Bone pode haver luz? Sempre que está a caminho da mercearia onde compra os cigarros para a mãe, Margô olha para aquele menino sentado na cadeira de rodas. Ele não parece ser afetado pela sujeira de Bone. Seu espírito é leve, seus sorrisos irresistíveis. Judah definitivamente não pertence à esse lugar. Ele é inteligente, engraçado e consegue ver através do coração amargurado da jovem. Os dias agora são ensolarados, há música no ar e quem sabe uma nova perspectiva. Sair de Bone, ver o mundo, estar ao lado de Judah. Porém o cheiro fétido do esgoto que corre pelas vielas ainda é intragável, o choro das crianças ainda é alto demais para ser ignorado e dolorosa é a tragédia que se abate sobre todos quando uma garotinha inocente some inesperadamente. Margô um dia foi como aquela criança indefesa, sua alegria lhe foi violentamente tirada e ela não consegue se impedir de investigar. As descobertas são horríveis mesmo para alguém quebrado como ela. Se não há justiça nesse mundo cruel, ela a fará com próprias mãos, mesmo que precise se perder ainda mais no processo.
Anos atrás assisti ao trailer de Isolados, o filme é um terror nacional protagonizado por Bruno Gagliasso. Uma frase dita pelo personagem me marcou profundamente na época e não pude deixar de lembrar dela quanto lia os primeiros capítulos de Invisível. No trecho específico do longa, aparece na tela uma casa de bonecas, os olhos da protagonista feminina passam pelas pequenas janelas da casa, e então a seguinte fala é proferida: “Casa? É onde começam os traumas”. A estranheza dessa sentença ainda me persegue, afinal muitos crimes passionais ocorrem dentro de quatro paredes, e nem precisamos chegar a tanto, afinal existem dores cujas origens não podem ser medidas por leis tão superficiais. Relacionamentos tóxicos causam feridas imensas, às vezes anos se passam até que possamos superá-los.
Eu já começo a resenha dizendo que esse é de longe meu livro favorito da Tarryn.
Tarryn Fisher é conhecida por seus personagens nada convencionais e totalmente humanos. Seus enredos trazem uma nova perspectiva ao ficcional e não raro nos vemos comparando essas irrealidades à experiências até mesmo corriqueiras do dia-a-dia. E isso, sinceramente, é assustador. Genial, porém assustador. Não sou adepta das comparações, mas com essa última obra, a autora de Fuck Love ganhou no meu coração um lugarzinho ao lado de Raphael Montes. Posso resumir Invisível em uma única palavra: PERTURBADOR
Há uma casa em Bone com uma janela quebrada coberta por uma folha de jornal. O revestimento externo da casa está caindo aos pedaços, sustentando um teto que parece carregar os fardos do mundo. Eu vivo nessa casa com minha mãe. Debaixo de chuva, debaixo de opressão, no quarto com a janela quebrada. Eu a chamo de a casa que devora. Porque, se deixar, esta casa vai devorar você, como devorou minha mãe. Como tenta me devorar.
Pra mim Tarryn é uma escritora completa, e vem amadurecendo mais a cada obra que publica. Ela tem ideias incríveis, cria protagonistas interessantes, e escreve genuinamente bem. Suas tramas são envolventes do início ao fim, a combinação de palavras usadas por ela formam um texto não apenas informativo, mas até mesmo bonito. Não importa se ela está descrevendo uma tragédia, de alguma forma é possível identificar um tom extremamente tocante na cena. Invisível aborda uma série de questões que por si só causam polêmica, tais como prostituição, violência doméstica e aborto, mas a maneira como Tarryn aborda todos esses assuntos é ainda mais incômodo, é visceral. Os dias se tornaram cinzentos enquanto eu lia, não importando quanto sol tivesse quando eu olhava para fora da minha janela. A trama é densa, sufocante. A riqueza de detalhes é impressionante sem ser extenuante. Você sente os cheiros, enxerga a vida miserável de Bone pelos olhos da protagonista, é como se estivesse respirando o mesmo ar estagnado de dentro da casa que devora.
O peso esmagador que essa casa tem na história fica perceptível desde o início. Uma estrutura em decadência, que deveria representar proteção e abrigo, se torna o algoz de Margô. A protagonista é digna de pena, mas algo em sua narrativa apresenta força, apresenta combatividade. Ela parece derrotada, mas na verdade só é esperta demais para lutar batalhas perdidas. Ela é fria e calculista, como uma grande aranha que tece sua teia e a cada virar de página você pensa o que virá a seguir. Seus pensamentos são profundos, cheios de reflexões sobre moralidade e a maneira crua como ela narra os fatos em primeira pessoa, nos aproxima da personagem de maneira muito íntima. Ela é uma antagonista em sua própria história. O realismo de sua percepção, por vezes carregado de um pessimismo, contrasta com o bon-vivant Judah. O personagem é o sopro de esperança que a história precisava para não ser dura demais.
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A amizade entre eles resgata uma humanidade em Margô, que acostumada a ser invisível, se pergunta se agora essa atenção é o suficiente para resgatar sua sanidade, que se perde mais a cada dia que passa. É importante mencionar que a personagem tem questões muito fortes a respeito de seu peso e aparência física. A dor sobre si mesma é revelada na forma de comentários agressivos e depreciativos sobre a aparência. Ela menciona muitas vezes o quanto é gorda, o quanto isso reforça sua invisibilidade, o quanto ela é não merecedora de amor por estar condicionada numa aparência que ela considera não atraente. A questão também é abordada pela mãe, que a despreza de muitas formas possíveis. Foi bem doloroso de ler, já que eu mesma tenho minha cota de dramas numa situação extremamente parecida. Invisível virou até tema de uma das minhas sessões de terapia. Foi uma obra importante na minha visão sobre as relações tóxicas que alguns de nós desenvolvemos sem querer com aqueles que amamos.
Do meu colchão, fico olhando para o teto. Manchas marrons profundas de infiltração marcam o que antes era tinta creme. Nessas marcas analiso nossos anos na casa que devora. A recessão gradual de felicidade. Nossa vida pode ser tão corroída lentamente que a gente nem percebe.
E por fim, como sempre acontece com os livros da Tarryn, existe aquele clímax na história que nos desestabiliza completamente. Em Invisível foi como ser atropelada por um caminhão. É surpreendente como a autora nos conduz a uma situação onde o real e o ficcional se confundem. Em um único capítulo a autora coloca em xeque tudo o que lemos até aquele momento e é impossível não ter um mini surto. Devo ter lido esse capítulo específico umas três vezes. Foi simplesmente genial. Eu queria poder falar nos mínimos detalhes tudo o que acontece a partir daqui, mas tirar esse prazer do leitor seria um crime. Eu queria poder esquecer essa história só para poder ler tudo de novo e ter aquela mesma reação. O desfecho a partir daí é de uma imprevisibilidade sem precedentes. Esse é aquele tipo de livro que nos faz pensar fora da caixa. E faço minhas as palavras de Finnick Odair em Jogos Vorazes: “Lembre-se quem é o verdadeiro inimigo”. Finalizo essa resenha dizendo: Esse livro é completamente incrível e perturbador. Eu amei e recomendo.
- Marrow
- Autor: Tarryn Fisher
- Tradução: Monique D'Orazio
- Ano: 2020
- Editora: Faro Editorial
- Páginas: 256
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