Vencedora dos Prêmios Hugo e Nebula na categoria “Best Novel”, a Trilogia de Marte, escrita por Kim Stanley Robinson, trata-se de uma das mais importantes histórias de ficção científica publicadas ao longo do século XX. Reconhecida e comentada por diversos escritores do gênero literário, além de teóricos da literatura e professores de física, química, biologia e mais uma porção de disciplinas, a história desta série de livros me acompanhou ao longo de todo o processo de pesquisa e estudos sobre literatura de ficção científica e distopia, realizado para que pudesse escrever e defender minha dissertação de mestrado. Entretanto, mesmo com a lista de autores nacionais e internacionais que indicaram a leitura de Red Mars e destacaram sua relevância para o meio literário e científico, meu contato com a história de Marte Vermelha aconteceu somente após a finalização de todos os processos e revisões necessários para que aquela dissertação de mestrado, construída com muito carinho, suor e lágrimas, fosse entregue para publicação.
Fundamentada em extensa pesquisa científica – comenta-se que Kim Stanley Robinson desenvolveu um arquivo de mais de 2000 páginas de informações, dados e conhecimentos científicos – Red Mars emprega uma premissa complexa, profunda e carregadíssima em reflexões, críticas e exercício de algo que filósofos como Hans Jonas chamariam de futurologia comparativa, porém, que poderíamos facilmente denominar como um criativo e instigante exercício imaginativo acerca de “tudo o que poderia acontecer caso a humanidade decidisse viver em Marte”.
Tomando como ponto de partida essa necessidade, vontade ou ambição humana por dominar o planeta vermelho, conheceremos o programa espacial que, financiado por diversos países – dentre eles Japão, Estados Unidos e Rússia -, selecionou 100 profissionais das mais variadas áreas do conhecimento para treinar, preparar e encaminhar ao desolado, inabitável e misterioso novo mundo. Uma vez em Marte, estes 100 indivíduos devem iniciar o planejamento, construção e concretização de projetos essenciais para a manutenção da vida humana, além de garantirem a disponibilização de acomodações, veículos de locomoção, edifícios de pesquisa, espaços capazes de produzir alimento e toda uma gama de atividades e usos que permitirão não somente a sobrevivência inicial do primeiro grupo de pessoas a pisar em solo marciano, mas também que direcionarão suas forças para estratégias e planos de terraformação.
Assim como em todo relacionamento e interações humanas, contudo, opiniões e visões divergentes aparecem e os membros da primeira expedição à Marte logo se encontram enfrentando longas discussões acerca das maneiras com que deveriam realizar a terraformação do planeta ou se, considerando inúmeros fatores, deveriam mesmo modificar toda a superfície e atmosfera para suportar uma espécie que nunca deveria ter deixado suas pegadas naquele solo. Ainda que os debates sobre as consequências, oportunidades e desafios da terraformação avancem e culminem no distanciamento de colegas e amigos, logo os olhares destes indivíduos se voltam para questões tão amplas e profundas quanto, pois, ao mesmo tempo em que uma parcela do grupo desaparece sem deixar vestígios, a chegada de novas pessoas, as ordens e exigências da Terra e a construção de comunidades e de uma inusitada e diversificada sociedade acabam por fazer surgir o sentimento de descontentamento perante o planeta Terra.
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Através das possibilidades contidas nestes dois grandes núcleos – sendo eles a terraformação e a consolidação de uma sociedade marciana – Kim Stanley Robinson delineia uma narrativa que, para além da apresentação de eventos trágicos, dramáticos e misteriosos, explora os mais variados detalhes e consequências da chegada de seres humanos em Marte. O primeiro volume da Trilogia de Marte faz bom uso de estratégias que permitem ao leitor conectar-se com a história e seus personagens, instigando-o a avançar por entre os acontecimentos das 592 páginas de escrita detalhista, aprofundada e cientificamente embasada da obra. Ao apresentar o assassinato do líder dos cem, o mistério por trás do desaparecimento de Hiroko e seus seguidores, as exigências impostas pelo planeta Terra e a chegada de forças de segurança interligadas a grandes corporações, a obra nos direciona para uma verdadeira busca por respostas e análise de atitudes, escolhas e conexões entre personagens. Tudo pensado para que exista equilíbrio entre estes pontos de tensão e o delineamento aprofundado de todo um contexto sócio cultural, político, econômico e ambiental que, pouco a pouco, transformam-se em aspectos centrais para a compreensão da narrativa.
Graças a estas características, bem como ao cuidado na transmissão de informações, às explicações embasadas em dados científicos e a grande atenção aos detalhes, Kim Stanley Robinson presenteia o leitor com uma história completa. Aqui conheceremos a superfície, atmosfera, subterrâneo, geologia e todos os detalhes físicos do planeta vermelho na mesma medida em que conheceremos as personalidades, sonhos, medos, tristezas e nuances dos principais personagens. Aqui conheceremos os direcionamentos, peculiaridades e desafios dos empreendimentos de terraformação na mesma medida em que descobriremos o estado sócio-político-econômico em que se encontra o planeta Terra. Aqui acompanharemos as mudanças físicas sofridas pelo planeta Marte na mesma medida em que percebemos as transformações em seus habitantes, comunidades e sociedade. O resultado, portanto, é a edificação de uma visão ampla do planeta vermelho, passando por suas rochas até seus novos e conflitantes habitantes.
Ao possibilitar a constituição de uma visão macro, meso e micro dos empreendimentos, escolhas e relações humanas em Marte, além de permitir que o leitor receba todas as informações necessárias para compreender os principais eventos de sua “colonização” e todas as consequências decorrentes, Red Mars também reflete a humanidade como a conhecemos. Seja na busca incansável por matéria prima e riquezas, na exploração e esgotamento de ambientes naturais, nas ambições cegas de grandes corporações, no surgimento de movimentos contra a ordem vigente, no sonho por melhores qualidades de vida, na busca por igualdade e equidade, observamos o melhor do ser humano, o pior e tudo o que existe entre estes dois pontos.
Por embasar-se em tantos pilares, abordar tantos assuntos, refletir acerca de uma quantidade considerável de variáveis, transmitir informações e dados científicos complexos e por vezes difíceis de serem assimilados, além de apresentar vários personagens e acontecimentos, Red Mars pode transformar-se em um verdadeiro desafio de leitura. Não somente o fato de tratar-se de um livro em inglês que torna a leitura complicada, mas todos os saberes e contextos que, por serem técnicos e distante de nossa realidade, podem confundir muito antes de tornarem-se conhecidos. Mesmo assim, o livro compensa com seus mistérios, com seus momentos de tensão e ação, com suas duras críticas, com a forma magnífica com que imaginou e, não feliz, explicou todos os detalhes do processo de terraformação do planeta Marte, bem como a construção de uma nova sociedade em solo extraterrestre!
Infelizmente, Red Mars nunca foi traduzido e publicado em território nacional. Como tantas obras antes desta e tantas que virão, os leitores brasileiros podem nunca receber a oportunidade de conhecer este clássico da literatura de ficção científica do final do século XX. Entretanto, para aqueles que amam o gênero e pretendem se arriscar nesta complexa e maravilhosa história, deixo aqui minha indicação. Sei que, por tratar-se de um livro em inglês, ele acaba por limitar o acesso de uma porção de leitores, mas não poderia deixar de compartilhar a Trilogia de Marte com vocês, pois acredito que estes exemplos, principalmente para aqueles que buscam conhecer mais do gênero literário, somente agregam nas discussões e conhecimentos.
- Red Mars
- Autor: Kim Stanley Robinson
- Tradução: -
- Ano: 1993
- Editora: Penguin Random House
- Páginas: 592
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