Minha relação com o gênero do terror remete à uma época em que os monstros do mundo real, as consequências catastróficas das escolhas humanas e todo o sofrimento que permeia a realidade não encontravam ambiente propício para instigar o mais tênue sentimento de ansiedade ou apreensão. Embora ainda sinta profundo carinho pelas histórias do gênero, confesso que são poucos os filmes, seriados e livros que, hoje, me instigam a ingressar nessa jornada misteriosa e assustadora. Também sinto que as antigas estratégias empregadas para assustar o espectador, além das clássicas fórmulas utilizadas para criar apreensão, acabaram me cansando justamente por compartilharem aquele velho e curioso “mais do mesmo”.
Junte tudo isso ao medo constante de me ver obrigada a acompanhar cenas de violência gratuita, de sangue escorrendo e de seres humanos concretizando as piores perversões… e você entenderá os motivos pelos quais permaneci tanto tempo distante deste querido e peculiar universo das histórias de terror.
Contudo, quando descobri o nome de Ari Aster, o título Midsommar, as inúmeras interpretações acerca de uma narrativa intrincada e os comentários sobre o longa que demonstrou para o mundo o talento e brilhantismo de Florence Pugh, percebi o desagrado para com o gênero, pouco à pouco, se desfazendo.
Ainda que meu contato com a história, elementos visuais, atuações e mistérios não se encontre marcada por fortes sentimentos, por conexões profundas ou aquela reconfortante sensação de “este filme transformou-se num dos meus preferidos”, parabenizo o cuidado de Ari Aster ao longo da construção e inter-relação dos elementos da narrativa de Midsommar. Ressalto a atenção oferecida desde a preparação dos quadros até a edificação dos cenários, chegando a elaboração cenas e direcionamentos tomados quando da fundamentação de uma atmosfera única e curiosa, que se estende por todo o filme. Destaco, por fim, o controle que Ari Aster demonstra ao longo de todo o processo criativo de Midsommar, o quanto arriscou quando da produção deste filme, o quanto ousou ao seguir por caminhos diferenciados, mas também, o quanto se inspirou em histórias – possivelmente pouco conhecidas – ao nos presentear com um filme de terror psicológico onde grande parte das descobertas, mortes e estranhezas ocorrem diante dos olhos iluminados do sol.
Existe algo curioso em Midsommar. Por motivos desconhecidos e teorias diversas – algumas ressaltam a possibilidade desta história tratar-se de uma espécie peculiar e sombria de fábula ou conto de fadas – as primeiras cenas do filme funcionam como um mapa para a jornada que se inicia. Elas delineiam, sem que o espectador tenha conhecimento do fato, os principais elementos, eventos e direcionamentos da narrativa que encontra-se prestes a começar. Antes de introduzir personagens, acontecimentos ou consequências, antes mesmo de estabelecer nossas expectativas e fundamentar possíveis apreensões, nos deparamos com os detalhes de um mural sombrio. Curiosamente, este mural instiga a interpretação, reflexão e discussão dos espectadores. Delicadamente posicionado nas cenas que precedem o início da história, ele realiza importante papel após o término do filme, uma vez que mantém dentro de si algumas das principais respostas para tudo aquilo que acompanhamos, ouvimos e sentimos.
A questão de Midsommar é que tudo pode ser interpretado, analisado, questionado e, principalmente, sentido. Cada cena, expressão, cenário, coloração, personagem ou objeto posiciona-se, delimita-se, apresenta-se com o intuito de instigar a formação de conexões entre a narrativa e as trajetórias particulares de cada personagem, entre o peculiar e misterioso mural e as mensagens transmitidas pelo filme, entre uma obra de ficção e a mente criativa e única de cada espectador. Por esse motivo, cada pessoa perceberá Midsommar de uma maneira. As experiência e o contato com o filme serão diversos. A história pode te prender em seus braços ou afastá-lo permanentemente. É por esse motivo, também, que Midsommar promove incontáveis debates, instigando novos espectadores a conhecerem seus domínios e, indiretamente, divulgarem o longa.
Seguindo por caminho contrário ao de populares filmes de terror, Midsommar faz pouquíssimo uso de cenas onde prevalecem as sombras em detrimento da luz. Em sua contraditória essência, apesar da claridade e paleta de cores agradável, as sombras permeiam os limites das temáticas e eventos demonstrados pelo filme muito mais do que suas cenas e ambientação. Com exceção de pouquíssimos exemplos, a grande maioria das cenas noturnas ocorre no início da narrativa, no momento exato em que somos apresentados aos principais personagens, suas personalidades, sentimentos e, principalmente, ao gatilho que possibilita o desenvolvimento de aproximadamente duas horas de filme.
Midsommar, na mesma medida em que explora o relacionamento desgastado e tortuosamente prolongado de Dani (Florence Pugh) e Christian (Jack Reynor), delineia as dores, traumas e luto enfrentado por uma protagonista que acaba de perder os pais e a irmã para o suicídio. Ao se aprofundar no aspecto psicológico, na personalidade, nos relacionamentos, nas crises e no próprio luto de Dani, o filme também reflete sobre o percurso conflitante que trilhamos a fim de nos curarmos, a fim de transformarmos dores em lembranças, a fim de deixarmos a tristeza para trás.
Por entre alegorias, metáforas, sacrifícios e uma realidade ficcional questionável, a narrativa demonstra o quanto precisamos escolher por abandonar aqueles que não nos fazem bem, as amizades que nada agregam, os amores que morreram, as pessoas cujo exercício da empatia localiza-se como último item da agenda. Midsommar, por fim, introduz uma comunidade isolada cujas crenças e cultura chocam personagens e espectadores, justificando estas mesmas crenças e cultura com pensamentos que fazem sentido somente até certo ponto. Embora, quando confrontado com aspectos práticos e lógicos da realidade em que vivemos, o longa demonstre certas falhas de caráter e construção de narrativa, percebe-se que, por mais improvável que seja, seu foco está na interpretação e não nas falhas existentes entre ficção inspirada no mundo real e realidade que fundamenta a ficção.
Por cada um destes motivos, acompanhamos os sutis detalhes da morte dos pais e irmã de Dani e percebemos a insensibilidade dos amigos, bem como do próprio Christian, para com as dores da protagonista. Por cada um destes motivos, compreendemos Christian como um personagem distante, apático e mesquinho. Por cada um destes motivos, estabelecemos forte conexão ou nos distanciamos inteiramente do percurso tortuoso de Dani, observando sua dor, luto e tristeza com uma infinidade de olhares e sentimentos.
Enquanto acompanhamos morte, tristeza e o caminho de uma protagonista traumatizada pela dor, encontramos uma ambientação clara, repleta de cores agradáveis, figurino delicado e sorrisos duvidosos. Embora Midsommar empregue a premissa do grupo de “amigos” que segue para uma comunidade isolada, curiosa e encantadora, transformando, pouco à pouco, os sonhos em pesadelos e a viagem de “férias” em tormento, sua intenção é refletir sobre o luto, os traumas que marcam nossas jornadas, os caminhos que trilhamos em busca de recuperação, além de transmitir uma curiosa e pertinente mensagem de “tudo ficará bem”.
Apesar de todo o sentimento, reflexão, choque, estranhamento e interpretações que surgiram ao longo das duas horas que compõem a narrativa de Midsommar, confesso não compreender minha relação com a história, não sendo capaz de expressar minha experiência com outras palavras que não “estranhamento”, “sentimento de implausibilidade” e “distanciamento”. Apesar de entender seus objetivos e mensagens, admito nunca ter sentido o pouco que senti quando conferi esse filme.
Com exceção de Dani, protagonista que ganha presença, tempo, atenção e valor na medida em que nos aproximamos do desfecho dessa história e, consequentemente, da atuação impecável de Florence Pugh, não fui capaz de me conectar com as cenas, demais personagens, narrativa ou elementos visuais e sonoros. Por mais que a mensagem principal de Midsommar seja clara e compreensível em minha mente, ainda me classifico como aquela espectadora que somente pensa e repensa nos pormenores dessa vila isolada. Ainda reflito e questiono a logística necessária para que tudo aquilo que não posso enunciar aconteça. Ainda duvido das justificativas culturais e da crueldade disfarçada de abnegação. Ainda disponho na balança os dados acerca da taxa de mortalidade versus taxa de natalidade. Ainda me indago sobre a produção de alimento e sobre a peculiar estratégia de enviar jovens para o mundo exterior.
Talvez a claridade tenha me colocado frente à frente com temáticas que preciso trabalhar, compreender e incorporar. Talvez o controle, a condução minuciosa e as próprias expectativas de Ari Aster para com Midsommar previam a diversas reações dos espectadores, bem como seu possível distanciamento. Talvez o carinho que sinto por Dani e minha necessidade de respostas lógicas para problemas narrativos que, definitivamente, não são relevantes para a narrativa, representem dois lados de uma mesma moeda. Talvez, no fim, seja perfeitamente aceitável olhar para os diversos elementos de uma história e sentir que se gosta dela na mesma medida em que não se gosta.
O que posso afirmar é que Midsommar não se alinha às premissas e estratégias utilizadas por famosos filmes de terror mainstream, cujas narrativas carregadas crueldade e jumpscares encantam multidões e, curiosamente, encantaram a pessoa que vos fala por longos e longos anos. Midsommar aborda temáticas profundas, sensíveis e pertinentes, porém, estas mesmas temáticas adquirem diferentes roupagens, exigindo sentimento, atenção e interpretação do espectador. Sua estética encantadora esconde e revela aquilo que não queremos ver. Trata-se de um filme para todos os amantes do terror, mas também para aqueles que preferem apoiar projetos que se lançam por caminhos inusitados.
Ainda que minha nota reflita minha experiência, indico Midsommar por acreditar que, às vezes, precisamos apenas sair da bolha do óbvio e focar o olhar em tudo o que está e não está diante de nosso campo de visão. Da mesma forma, nunca é tarde para exercitar nossa capacidade de interpretação… ou mesmo para receber uma mensagem e olhar de que “tudo ficará bem”!
- Midsommar
- Lançamento: 2019
- Com: Florence Pugh, Jack Reynor, Vilhelm Blomgren
- Gênero: Terror, Drama
- Direção: Ari Aster