Ao começar esta crítica sobre o filme brasileiro M8: Quando a Morte Socorre a Vida, percebi que seu título conta muito mais sobre a história do que sua sinopse, que não deixa, no entanto, de ser bastante interessante. O filme, dirigido por Jeferson De, começa sua narrativa a partir do momento em que Maurício (Juan Paiva) inicia seus estudos em uma faculdade de medicina no Rio de Janeiro.
Homem negro, Maurício sente-se diferente de todos seus colegas de faculdade, brancos e com condições socioeconômicas privilegiadas. Nas aulas de anatomia, Maurício e seu grupo passam a estudar o cadáver de um homem negro conhecido apenas por seu código de designação, M8 (interpretado por Raphael Logam). A partir de então M8 passa a habitar os sonhos e os pensamentos de Maurício, impelindo-o a uma busca pela descoberta de sua identidade.
Antes de mais nada, acho importante avisar que este filme está muito longe de ser uma narrativa de suspense ou investigativa, como a sinopse pode erroneamente indicar. Aliás, este foi um engano que eu cometi, indo assistir a este filme na expectativa de obter respostas para esta sinopse tão enigmática. Fiquei feliz em ter me enganado, porque o que encontrei em seu lugar foi ainda melhor: uma narrativa extremamente simbólica e imagética para pensar em racismo estrutural no Brasil na atualidade. A imagem de M8 aparece ao longo do filme para Maurício – e para nós – para nos convocar a pensar na morte da população negra.
Basta lembrar que, em 2019, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população negra tinha 2,7% mais chances de ser vítima de assassinato do que a população branca. Não foi à toa que Elza Soares disse em sua música “A carne” que “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, uma evidente metáfora usada para apontar que nesta sociedade mercadológica em que vivemos as vidas negras são as menos valorizadas.
M8 nos convida a pensar nessas mortes negras, sem nome ou com muitos nomes, mas que apontam para uma realidade violenta de nossa sociedade. M8 também nos convida, no entanto, para narrativas de resistência, de luta e de força. Uma dessas narrativas é a de Cida (Mariana Nunes), mãe de Maurício e enfermeira. A personagem se destaca em cada cena que aparece, tanto pela ótima interpretação de Mariana Nunes, quanto pela força da personagem e de sua história. Não é apenas Cida que demonstra esta força, no entanto. A presença de M8, em sua morte, denuncia a vida e a violência presente nela, mas também aponta para resistência e força. A morte que, tal como diz o nome do filme, socorre a vida. Maurício pode ser o estudante de medicina, mas quem salva vidas, ali, é M8.
Acredito que este é um filme necessário. Talvez não para pessoas que, tal como Maurício, vivenciam o racismo e lutam contra ele cotidianamente, mas para um outro público, um público que talvez não perceba tão facilmente o racismo presente nas vivências cotidianas. Isto, acredito eu, é apontado pelo próprio filme no momento em que a personagem Suzana, uma das amigas de Maurício, fala sobre si mesma e sua situação de privilégio que faz com que eventualmente o racismo estrutural se torne maior do que ela mesma nas vivências cotidianas. Este me parece ser um filme que evidencia aquilo que está na frente dos nossos olhos todos os dias, mas que ainda assim podemos eventualmente não enxergar, justamente por causa de nossos privilégios.
Acredito que uma das possíveis tarefas do cinema é a de escancarar visualmente aquilo que sempre esteve diante de nossos olhos, fazer ver o que está lá, mas às vezes não é visto, e esse filme cumpre essa tarefa perfeitamente. Cabe ainda ressaltar que este filme foi baseado no livro homônimo de Salomão Polak, que, infelizmente, encontra-se esgotado no momento. Para aqueles que tiverem interesse em ver M8: Quando a Morte Socorre a Vida, ele se encontra disponível na plataforma de streaming Netflix no momento desta publicação.
- M8: Quando a Morte Socorre a Vida
- Lançamento: 2020
- Com: Juan Paiva, Raphael Logam, Henri Pagnoncelli
- Gênero: Drama, Suspense
- Direção: Jeferson De