A Sonata Perfeita é um lançamento de 2020 da Darkside Books, dividido em três partes. Sendo a primeira parte uma apresentação, já na Suíça, em 1947, em um cenário pós Segunda Guerra Mundial, conhecemos Gustav, um jovem de apenas seis anos, órfão de pai, que mora em um apartamento paupérrimo com sua mãe Emilie – quem ele ama acima de tudo -, sobrevivendo do pouco que ela ganha trabalhando na fábrica de queijo.

O relacionamento entre ambos é distante, um tanto quanto frio, e complicado de ser explicado, já que Emilie é uma mulher amargurada pela vida, que guarda seus sentimentos para si, e tenta passar isso para o filho, sempre o lembrando de ser mestre de si mesmo e não o deixando esquecer que seu pai morreu por ser um herói. Gustav sempre foi muito solitário, até que um novo coleguinha chega ao jardim de infância, Anton, um garotinho judeu. O laço que criam naquele primeiro dia é muito forte, e ainda que Emilie seja contra, Gustav em sua inocência infantil é incapaz de compreender a antipatia da mãe e persiste tornando a amizade forte e duradoura.

A segunda parte do livro é uma volta ao passado, e é aí que conhecemos a história de Emilie, em uma Suíça de 1937, em um período de guerra. Nos deparamos com uma jovem sonhadora, talvez até iludida diante de toda a dificuldade que foi sua vida, buscando meios de sair de onde foi criada e ter uma família estruturada e feliz. Emilie até então é saudável, determinada e focada em conquistar Erich, o homem que vem a ser pai de Gustav. O fato é que aqui compreendemos tudo o que aconteceu com Emilie, os motivos dela ser como é, assim como a construção de seu relacionamento com Erich, o que o tornou um herói, e o que o destruiu… sua morte prematura e com ela as consequências, ou melhor, as cicatrizes deixadas em Emilie.

E então chegamos à terceira e última parte desta narrativa, e aqui nos deparamos com Gustav e Anton no auge de seus cinquenta anos de idade. O que percebemos logo de cara é que a amizade perdurou mesmo com todas as diferenças que tiveram. E podemos por fim descobrir quais caminhos seguiram, que escolhas fizeram, o que o futuro reservou. E olha… vamos nos surpreender em alguns aspectos e nos decepcionar com outros.

“Porque a vida é assim. Você nunca pode voltar ao que já passou.”

Gustav e Anton, são um contraste desde o início. Gustav teve uma infância sofrida, de muita pobreza, falta de afeto materno e nunca conheceu seu pai, ou teve qualquer informação por parte de sua mãe sobre ele, a não ser o fato dele ter sido injustiçado e um herói, suas expectativas em relação ao futuro são praticamente nulas e isso torna sua dor palpável. Anton por sua vez possuía um talento prodigioso, tocava piano, sua família totalmente estruturada o amava e incentivava, assim como sua condição de vida era muito superior, já que seu pai era um banqueiro. Além do contraste social, temos suas personalidades distintas. Enquanto que Gustav está sempre controlado, focado, Anton é negativista, vulnerável, ambicioso em seus sonhos, quase que incontrolável e isso os acompanha até a vida adulta, criando uma ambiguidade de sentimentos ao que ambos sentem em relação um ao outro.

A Sonata Perfeita é uma leitura triste, sensível, intensa, emocionante e muito complexa, complexa ao ponto de ser difícil de descrever tudo o que foi abordado e todas as camadas que aqui encontramos. Toda a trama é muito inteligente, bem construída, com personagens densos, muito bem desenvolvidos, cheios de lutas, anseios e receios, tendo como pano de fundo a guerra, questões histórico políticas, punições, injustiça, traições, amores não correspondidos, sonhos estilhaçados, ganancia, relações familiares, relações interpessoais, mas também é sobre amor em todas as suas formas, amizade, perdão e esperança… É uma leitura rápida, que te prende desde a primeira página. E o final é… agridoce, quase que ácido, pois ainda que não seja triste, tão pouco é feliz, talvez seja um equilíbrio de ambos.

Acompanhar Gustav e Anton, dos seus seis aos sessenta anos, foi um misto de emoções. Gustav é um personagem muito especial, que me pegou por sua força, simplicidade e amor incondicional por sua mãe, ainda que o sentimento não fosse reciproco. Ele é um jovem que acolhe, que se esforça para ajudar aos que ama, que se tornou sim um “coco” – ao ler você vai entender a referência. Mas que infelizmente me deixou com a sensação de ser passivo demais em relação as pessoas a sua volta, sempre se colocando em segundo ou terceiro lugar.

Anton por sua vez não foi um personagem por quem nutri empatia, compreendi seu sonho, entendi o obstáculo que ele tinha, e o quanto isso o machucou, ele encontra em Gustav uma dependência emocional muito grande, e não retribui a entrega, a amizade do amigo. Anton recorria sempre a Gustav, porque ele era seu porto seguro, e em nenhum momento se preocupou com o quanto o afligia, o machucava vê-lo fazer escolhas egoístas e mimadas. Pensei que na terceira parte iria encontrar um maior desenvolvimento da relação que eles construíram na infância, algo que justificasse com mais afinco o desfecho de ambos, mas isso não aconteceu, portando a sensação de unilateralidade permaneceu.

“Tempo. Quando você é jovem, acha que sempre terá tempo para fazer tudo que quiser. Você não percebe o tempo passando, esse é o problema. Mas ele passa mesmo assim.”

Emilie é uma personagem que amamos e odiamos na mesma proporção. Ela é fria, não dedica nenhum afeto ao filho, não o abraça, não o encoraja, e por vezes isso machuca o leitor, da mesma forma que está ferindo Gustav. Mas com o passar das páginas, vamos tendo pequenos vislumbres de como ela era, de como ela cresceu, sobre todos os seus sonhos, suas ambições e de como isso foi sendo minado… e então queremos abraça-la, ainda que isso não justifique a forma como ela se relacionava com o filho. E então compreendemos que, Emilie desejou muito ser mãe, ela quis muito amar o seu filho, mas ela não conseguiu. E parte disto é culpa de seu amado Erich, que teve sim atitude de herói, que foi um homem capaz de olhar para a dor do outro, que lutou por uma causa perdida, mas que foi traído, punido injustamente, e que também errou… errou como marido, errou como homem, como amigo… e a consequência de todo o turbilhão, foi sua morte precoce.

Eu gostei muito da leitura de A Sonata Perfeita, independentemente dos apontamentos que aqui fiz. Rose possui uma narrativa fluida, envolvente, que faz o leitor refletir, que aborda assuntos pesados, mas de maneira muito natural, nada é jogado para simplesmente chocar, muito pelo contrário, tudo é aplicado de maneira muito sagaz, os detalhes são o que tornam esse texto tão rico e emocionante. E apesar de toda a tristeza a cerca da história, ela ainda é uma obra linda, que não te deixa parar de ler, enquanto não se chega ao fim.

Uma menção honrosa a edição linda da Darkside e todo o trabalho editorial. Fica aqui essa dica de leitura, para todo leitor que ama uma história forte, que não tema se emocionar, se angustiar e não é sensível a temas como abuso e violência.

  • The Gustav Sonata
  • Autor: Rose Tremain
  • Tradução: Bruna Miranda
  • Ano: 2020
  • Editora: DarkSide Books
  • Páginas: 272
  • Amazon

rela
ciona
dos