Tenho acompanhado Rupi desde seu primeiro trabalho. Lembro que trabalhava em uma livraria na época que ela lançou o primeiro livro. achei o título bastante sugestivo e que isso despertou minha curiosidade. Lembro que não gostava desse tipo de poesia até virar a primeira página. Lembro que senti ter ganhado uma amiga quando finalmente terminei de ler o último texto. O talento de Rupi Kaur me surpreendeu, me arrebatou, me educou. Nas linhas dela eu aprendi sobre feminismo, sobre amor próprio, sobre dores e recomeços.

Sua escrita íntima, simples e poderosa, me deslocou do eixo, me tirou da zona de conforto. Lembro-me de folhear o livro mesmo depois de já ter finalizado a leitura, abrir em uma página qualquer e como que de assalto ler um poema para algum desaviado. Parece que nunca se está pronto para conhecer essa autora. Vendi mais exemplares do que consigo lembrar e acho que devo ter influenciado alguns novos fãs. Na verdade é muita prepotência achar que eu tive algum papel nisso, crédito todo para essa artista completa. É ler algumas linhas e se apaixonar perdidamente.

Comprei a edição de capa dura de O que o sol fez com as flores, mesmo já tendo a edição normal. O livro, que é o segundo escrito por Rupi e que a Planeta nos fez o imenso favor de trazer para o Brasil, ficou por meses na minha estante. Eu simplesmente não tinha coragem de dar início à leitura. Ler os poemas dessa autora é como entrar na sessão de terapia e exorcizar todas aquelas dores que você nem sabia que tinha. É se descobrir em novas experiências, novos olhares e novas nuances. Você se desnuda, mas também se sente acolhido. Você se conecta com a autora, com a história dela e com a história de outras tantas pessoas pelo mundo que passam pelo mesmo que você. É uma jornada inteira no virar das páginas. É precioso! E exatamente por isso eu esperei o momento ideal para reencontrar as palavras amargas e verdadeiras de Rupi Kaur.

Meu coração estava partido, e eu encontrei poemas sobre dizer adeus. Eu queria recomeçar e encontrei poemas carregados de esperança, eu queria esquecer um pouco de mim e encontrei poemas sobre vidas distantes em terras desconhecidas. Eu tive alento, afago, abraço. Eu estava no ônibus quando li o último poema do livro, lembro-me de sentir o coração quentinho e a satisfação que apenas as leituras excelentes nos trazem.

parte meu coração ouvir as histórias das pessoas que dão tudo de si por muito menos do que merecem/ como é que nós dormimos à noite sabendo que os sistemas que apoiamos tratam os alicerces da sociedade como cidadãos de classe inferior quando é graças a essas pessoas que as engrenagens deste mundo continuam girando

É engraçado como os livros dessa autora chegam até mim sempre no momento em que mais preciso deles. Em seu mais recente livro de poemas, Rupi Kaur está ainda mais madura em seu texto. As dores são mais viscerais, suas palavras mais duras, e sua sinceridade mais ácida. As linhas nos deixam em choque, mas também nos abrem os olhos para uma realidade brutal. As páginas quase choram, devido ao peso de seu conteúdo. Encontrei nessa obra uma Rupi ainda mais sincera, mais consciente de si, mais orgulhosa de sua história de vida. Nesse momento, em que busco uma conexão comigo mesma, os poemas falam do encontro do corpo e da alma. Falam sobre padrões estéticos, sobre feminilidade e sobre feminismo. E falam sobre o corpo como objeto, como arma, como troca. E falam sobre a alma como lar, como refúgio, como destino. Rupi fala sobre abuso infantil, sobre estupro, sobre violência. Na verdade ela grita e eu nunca percebi tanta dor nela. Ela já falou disso nas obras anteriores, mas não nesse tom, não com essa coragem. É como alguém que enfrentou seus piores pesadelos de frente e que agora vê neles uma lembrança dolorosa e não mais assustadora.

eu vou ficar quieta na hora em que dissermos abuso sexual
e os outros pararem de gritar mentirosa

Mas também um conheci um lado mais vulnerável da autora. Ela nos fala sobre a autocrítica, sobre a necessidade de ser útil o tempo todo, sobre cobrança externa e interna de produzir mais e mais conteúdo. Os poemas que sempre foram uma segunda casa se tornaram também um produto em meio ao capitalismo e ela mostra preocupação em ocupar essa posição. Os poemas são autobiográficos e nos levam por uma viagem de autoconhecimento e cura.

A divisão dos textos mostra uma ordem quase que cronológica de um processo terapêutico. Rupi se torna mais e mais orgulhosa de suas origens, de suas raízes. Ela fala com grande amor da sua terra natal, se lembra dos cheiros, dos sons, e da cultura. Ela nos brinda com memórias tristes e alegres. É como fazer uma viagem ao lado dela. O amor também aparece nesse livro, mas diferente dos outros que possuíam uma narrativa mais romântica, ‘meu corpo minha casa’ fala de um tipo mais poderoso de amor. A emoção aparece no abraço dos antepassados, na conversa com as amigas e nos momentos de autocuidado. Rupi fala de um amor que deve ser compartilhado e não apenas recebido.

gosto demais da minha vida para ficar toda derretida pelo próximo homem que me deixar com frio na barriga
quando eu posso me olhar no espelho e me tirar o fôlego

Meu Corpo Minha Casa nos traz ainda ensinamentos valiosos sobre saber reconhecer relacionamentos tóxicos, sobre dizer adeus quando não há mais espaço e sobre priorizar a si próprio. Rupi romantiza apenas a reciprocidade, o respeito mútuo. E fala sobre a importância de medir a si mesmo com essa mesma régua de empatia e cuidado. Tratamos o outro com tanta gentileza, mas esquecemos de fazer o mesmo com a pessoa refletida no espelho. E se enxergar é o primeiro passo para se amar. E só amando a si mesmo que conseguiremos amar o outro da forma mais saudável possível. Finalizo a resenha com uma frase bastante conhecida da música “Triste, Louca ou Má” da banda Francisco, el Hombre: “Sua casa não te define, sua carne não te define, você é seu próprio lar.”

  • Home Body
  • Autor: Rupi Kaur
  • Tradução: Ana Guadalupe
  • Ano: 2020
  • Editora: Planeta
  • Páginas: 192
  • Amazon

rela
ciona
dos