O que você estaria disposto a fazer por dinheiro? Talvez sua resposta seja: “depende do que vou precisar fazer”, ou quem sabe “de quanto dinheiro estamos falando?”. Mas e se você não soubesse de antemão nem o valor, e nem a tarefa? Será que ainda estaria disposto a aceitar uma proposta como essa? E se a proposta incluísse uma regra implícita de que uma vez que você aceitou, não pode mais voltar atrás? Parece arriscado demais, talvez perigoso demais… Mas e se o dinheiro fosse o suficiente para salvar a vida de quem você ama? Quanto vale sua honestidade? Será que todos nós temos um preço?
Tudo começou com uma pequena mentira, se é que mentiras podem ser mensuradas. Mas pareceu tão simples escutar uma mensagem destinada a outra pessoa, pareceu tão simples dizer que era amiga de alguém que ela viu apenas uma vez, pareceu tão simples sentar em frente ao computador e responder uma pesquisa sobre lealdade. Afinal pesquisas possuem fins acadêmicos e de quebra Jéssica Farris ainda vai ganhar uma grana extra. Os pais possuem uma dívida financeira que envolve a residência da família, e ela, possui uma dívida moral com os pais e a irmã, dívida essa que não poderá ser paga nunca. Cada gorjeta extra vai direto para o tratamento da irmã Becky. O dinheiro do experimento desenvolvido pela equipe de psicologia veio em ótima hora e bastou uma ou outra inverdade para participar.
O estudo não deveria ter uma participante 52, mas Jéssica Farris era interessante demais para ser descartada. Ela mentiu, e a pessoa do outro lado da tela sabe disso. Além dessa primeira atitude, que outras desonestidades a participante 52 já cometeu, e o principal, o que mais ela poderia fazer motivada por sua ambição financeira? Apesar de ter mentido para chegar até ali, respondeu com sinceridade cada pergunta que apareceu no visor do computador e com isso se desnudou para um desconhecido. Contou segredos íntimos. Deu para seu algoz a arma necessária para prendê-lo em uma planejada teia de experimentos. Mas Jéssica ainda não sabe disso. Ela é como um rato que está perto demais da ratoeira, e que olha apaixonadamente para o pedaço de queijo na armadilha mortal. Shields finalmente tem o que precisa para por seu plano em prática, resta saber se Jéssica irá cooperar, ou se precisará ser persuadida.
Eu escolhi esse livro dentre os lançamentos da Faro Editorial devido ao título e a premissa inicial que se lê logo na capa “o lado mais cruel aparece quando estamos nas sombras”. Isso me pareceu mais uma frase de efeito produzida pelo marketing com o propósito específico de chamar a atenção dos leitores, e sinceramente, funcionou comigo. A trama é envolvente e cheia de mistérios que vão sendo revelados a cada capítulo. Gostei de como a tensão foi construída, pouco a pouco, sem que o leitor perceba de fato. É um dia comum para a protagonista, um dia que pode mudar sua vida para sempre, mas ela não sabe disso. E quem saberia? E então num determinado ponto da trama ela e o leitor pensam: “o que está acontecendo aqui?”.
Conheça A Mulher Entre Nós, outro livro das autoras
É um choque perceber que fomos envolvidos em uma perigosa trama de mentiras sem que isso tenha ficado evidente logo de cara. Alguns autores preferem iniciar a história já entregando o ouro, é tiro e porrada pra todo lado e você não consegue parar de ler até virar última página. Mas em “A Garota Anônima” esse recurso não foi utilizado. O desenvolvimento é lento, mas não menos interessante. Eu amo quando um autor consegue fazer um bom início, coeso, rico em detalhes, e então prender pela qualidade da escrita, e não apenas por uma técnica literária já utilizada em tantas obras.
As autoras nos entregam personagens complexos e bem construídos. Os narradores são verdadeiros antagonistas e é difícil decifrar quem é a vítima e quem é o algoz. Quem de fato é a garota anônima que dá nome ao livro? Quais são suas verdadeiras intenções e motivações? Somos conduzidos com maestria pelas autoras. Entramos na mente de Jéssica, vemos seus medos, sonhos e segredos. Acompanhamos sua trajetória cheia de mentiras que se tornam mais perigosas a cada virar de página, e então conhecemos Shields e sua percepção metódica e calculista da vida e de tudo mais ao seu redor. Será que suas atitudes totalmente controladas são indícios de uma pessoa inofensiva ou existe algo mais por trás dessas emoções tão contidas? A narrativa diferencia e pontua perfeitamente cada um desses opostos. Jéssica nos conta sua história em primeira pessoa, sua narrativa é linear, confiável e dinâmica. Quando a fala é de Shields, as autoras ousaram brincar com um texto subjetivo. A peculiaridade do personagem fica aparente em seu relato desprovido de emoção, bastante técnico e permeado pela frieza. A narrativa é em segunda pessoa e Shields nos conta uma história que não é sua e, portanto, não é tão confiável.
Você se apresentou para o desafio. Está aqui contrariando todas as probabilidades. Infiltrou-se no experimento sem ter sido convidada. Seu perfil é diferente do das outras mulheres que estavam sendo avaliadas. O experimento geral foi suspenso por tempo indeterminado. Você, Participante 52, agora é meu único foco.
Esse livro tem o tom angustiante da expectativa, quando você sabe que algo está por vir, mas ainda não sabe o quê. Não é que ele seja imprevisível, na verdade o enredo é bastante simples, mas a condução dos fatos é angustiante. Alguns momentos me deram até palpitação. Um dos personagens é tão furtivo que em determinado ponto da história até você acha que está sendo seguido. Parece que eu seu olhar embaixo da cama, ele estará lá à espreita. É um verdadeiro terror psicológico. Pra mim, os piores pesadelos são sobre crimes passionais. Quando a força dos sentimentos se torna uma motivação perversa para todo o tipo de violência. É assustador pensar que absolutamente qualquer pessoa pode perpetrar algo do tipo. Não é sobre monstros fazendo coisas horrendas, é sobre pessoas comuns, que do dia para a noite se tornam assassinos.
Ela não é uma pessoa fisicamente violenta. A arma mais poderosa que ela tem é a sua mente. E ela a usa sem piedade.
Eu fico bastante dividida com o desfecho. Eu não consigo sentir ódio pelo tal vilão, se é que posso chamar assim, mas me compadeço da sua loucura. Mas tenho certeza que isso tem mais a ver com a carga emocional do clímax do que por uma questão de justiça. Pois se formos falar em justiça, o final deixa ainda mais perguntas e talvez nunca tenha havido de fato uma vítima nessa história. A moralidade é levantada a todo instante nas linhas de Greer e Sarah, mas a grande ironia é que nenhum dos personagens pode dizer que é de fato honesto, justo ou verdadeiro…. Mas e quem de nós realmente é? A Garota Anônima brinca com as emoções humanas em sua essência e nos mostra que mesmo o mais correto de nós tem um preço. Resta saber qual é o seu.
- An Anonymous girl
- Autor: Greer Hendricks & Sarah Pekkanen
- Tradução: Fábio Alberti
- Ano: 2021
- Editora: Faro Editorial
- Páginas: 365
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