Talvez nunca tenhamos precisando tanto de amor quanto nesses últimos tempos. Em meio ao caos que nos tira a paz, o medo e o luto parecem ser uma constante em nossas vidas. Não poder abraçar nossos entes queridos, não poder encontrar os amigos, não poder se despedir adequadamente de quem parte, deixa em nós uma sensação dolorosa de desesperança. É preciso renovar nossa fé no amanhã, é preciso coragem para se erguer dia após dia e ainda encontrar forças para olhar para além de nós, para ter empatia, para ter paciência. É preciso muito mais amor.
Martin Luther King Jr fala com propriedade sobre a bíblia e assuntos seculares, respeita a ciência, ama o conhecimento e é um grande conhecedor da linguagem. Mas para além disso, Martin ama o Deus a quem serve. Ele O ama, assim como ama seus filhos. A admiração que Martin tem por Aquele em quem acredita, o fazem forte, o fazem justo, o fazem amoroso. Sua retidão inabalável, e a postura paciente mesmo diante das adversidades são exemplos de um cristianismo vivo, real. Compreensão e afeto escorrem de suas palavras, mas seu discurso ainda é forte, poderoso. Ele exorta as pessoas com grande vigor, mas nunca perde o tom paternal. Sua preocupação é real, pela causa, pela fé, e principalmente pelas pessoas. Martin esteve em prisões frias e assustadoras, foi privado de estar com quem amava por vezes sem fim, teve sua vida ameaçada de diversas formas, perdeu amigos queridos em nome de uma luta maior. Martin sentiu fome, medo e tristeza. Mas ele nunca perdeu a esperança, ele nunca perdeu a fé.
Martin, assim como nós, passou por tempestades sem fim. Nossas medos e problemas podem ser diferentes, mas isso não muda o fato que todos nós sentimos dor. A mensagem do reverendo não foi dita á nós nesses tempos sombrios, mas suas palavras ecoam ao longo dos anos e tem o poder de trazer conforto, de trazer esperança. A resposta que Martin dá para a postura que devemos ter diante das dificuldades é simples, mas não menos difícil. Amor… o amor, tal como dito pelo Pastor Henrique Vieira na música Principia do cantor Emicida, é o segredo de tudo. Como posso amar em meio a dor? Como posso amar em meio a injustiça? Como posso amar quando sinto tanto medo?
A meia-noite é uma hora confusa, em que é difícil ter fé. A palavra mais inspiradora que a Igreja pode dizer é que nenhuma meia-noite dura muito tempo. À meia-noite, o viajante cansado que pede pão está realmente procurando o amanhecer. Nossa eterna mensagem de esperança é que o amanhecer chegará.
Martin responde cada uma dessas perguntas ao longo dos 16 sermões reunidos nesse livro. Os ensaios aqui publicados causaram certa apreensão em Martin. Ele acreditava firmemente que os sermões alcançariam melhor o coração se fossem ouvidos. Ele de fato pensava que não havia sido bem sucedido em sua tarefa de compilar os discursos. Em suas próprias palavras: “Portanto, um sermão é dirigido ao ouvido que escuta, não ao olho que lê.” Talvez Martin não tivesse a dimensão do quão longe suas palavras escritas chegariam. Talvez ele não soubesse que tantos anos depois, nós ainda seriamos tão carentes de seus ensinamentos. Sua contribuição para a sociedade ainda vive, ainda é aclamada, e com um pouco de tristeza eu digo, ainda é necessária. Sua voz pode ser ouvida mesmo através das páginas e é impossível não se emocionar com tamanha fé.
Não há leviandade na construção do seu texto, ele usa as mais belas palavras para elucidar mesmo a ideia mais simples. A riqueza narrativa com que Martin criou seus discursos é mais uma prova da incrível capacidade que ele tinha de amar e respeitar as pessoas. Aulas inteiras cabem dentro de um sermão, e isso certamente foi um presente para todos aqueles que tiveram a chance de escutá-lo ou lê-lo ao menos uma vez.
É verdade que a base causal do sistema de escravidão se deve em grande parte ao fator econômico. Os homens se convenceram de que um sistema que era tão lucrativo em termos econômicos deveria ser justificável do ponto de vista moral. Formularam elaboradas teorias de superioridade racial. Suas racionalizações impingiram erros óbvios nas belas vestes da justiça.
É importante entender o background da época, pois isso reforça o caráter admirável do reverendo Martin Luther King Jr. Penso que é fácil amar quando todas as situações parecem favoráveis. É fácil pregar amor e paciência quando a vida é livre de qualquer percalço. Mas Martin amou em meio ao ódio, em meio à ameaça, em meio ao medo. Martin amou e pregou amor. Mas o amor de Martin nunca o fez silenciar diante das injustiças, nunca calou seu clamor por liberdade, por respeito. Ele era um pacifista sim, mas não passivo. Martin ensinava que ser paciente não é sinônimo de ser displicente. Ele ensinava a lutar por direitos não com armas, mas com amor. Ele acreditava que educar e exortar era a melhor ferramenta para mudar uma nação. Por isso seus sermões eram verdadeiras aulas. Ele explicava com a bíblia, com a ciência, com a história, o motivo de a segregação racial ser uma ofensa não apenas ao homem negro, mas a uma sociedade inteira. Ele declamava apaixonadamente sobre seu sonho de um futuro de liberdade, prosperidade, e principalmente, um futuro onde todos homens pudessem ser tratados como iguais.
Uma religião que professa preocupação pelas almas dos homens e não está igualmente preocupada com as favelas que os desgraçam, com as condições econômicas que os estrangulam e as condições sociais que os aleijam é uma religião espiritualmente moribunda.
E é nesse ponto, exatamente aqui, que eu gostaria de fazer breves considerações. Será que Martin iria manter o mesmo tom pacífico ao ver que em 2021 seu povo ainda estaria em tamanho sofrimento. Qual seria sua reação ao ver a violência policial contra a população negra, o encarceramento em massa, a falta de oportunidades igualitárias? Como ele reagiria ao saber que em maio de 2020 surgiram 204 novas páginas neonazistas no Brasil, que pregam a supremacia branca? Durante a leitura eu não conseguia deixar de me fazer essas mesmas perguntas… Não que eu seja a favor do ódio. Longe de mim defender qualquer tipo de violência. Mas também não me vejo no direito de silenciar a raiva e a mágoa de alguém que sofre racismo todos os dias. Não consigo olhar para a minha amiga que escutou que é “bonita pois tem traços de branca” e dizer que ela deve ter amor e responder de forma branda à esse comentário.
Me pergunto o quanto esses sermões tão lindos de Martin deixaram pessoas desconfortáveis com seus próprios sentimentos de ira. O quanto elas tiveram que anular essa indignação em nome do amor cristão. Isso também é uma forma de silenciamento, e o silenciar também é um tipo de violência. Sem sombra de dúvidas, eu ainda recomendo esse livro. Mas ele deve ser lido da mesma forma que consumimos outros conteúdos: com discernimento e uma mente questionadora.
- A gift of Love
- Autor: Martin Luther King Jr
- Tradução: Claudio Carina
- Ano: 2020
- Editora: Planeta
- Páginas: 240
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