Meu primeiro contato com O Gambito da Rainha foi através da série produzida pela rede de streaming Netflix. A série trata da vida de uma garota órfã norte-americana, Beth Harmon, que é um prodígio no xadrez, acompanhando sua infância e crescimento em meio aos jogos e competições. Essa foi uma das séries que mais gostei nos últimos dois anos, e a razão para isso não teve nada a ver com o xadrez. Fiquei absolutamente fascinada pela personagem principal, tentando entender seus conflitos, pensamentos e sentimentos. A atriz que representa Beth Harmon, Anya Taylor-Joy, foi uma das razões para isso, com uma performance expressiva, mas que, ao mesmo tempo, respeitava certo mistério presente na personagem. Assim, quando fiquei sabendo que a Arqueiro havia lançado o livro no qual a série da Netflix havia se inspirado, soube instantaneamente que essa era a minha chance de entender um pouco mais sobre Beth Harmon. A partir disso entrei em contato com o livro de Walter Tevis.
Assim que comecei o livro me deparei com uma escrita precisa, que ia direto ao ponto, sem devaneios ou reflexões acerca dos pensamentos ou sentimentos dos personagens. A princípio isso havia me incomodado: senti que o início da história foi um pouco corrido demais, que poderia ter se demorado um pouco mais na infância da personagem. Aos poucos, no entanto, entendi que esse estilo narrativo me contava muito mais sobre Beth Harmon do que um extremamente descritivo. A meu ver, não há mergulho na interioridade de Beth porque ela mesma não está em contato com seus próprios sentimentos, o que pode ser visto aos poucos, percebido em pequenos trechos ao longo de toda a narrativa.
Posso explicar um pouco melhor essa minha percepção ao descrever um pouco o fluxo desta história. Acompanhamos a trajetória de Beth pelo xadrez, desde o momento em que aprendeu a jogar até as maiores competições. Ao longo disso, podemos perceber que diversos tópicos vão sendo introduzidos, tópicos esses que mostram aspectos da vida de Beth: sensação de solidão, os relacionamentos que ela vai formando ao longo de sua vida, como ela percebe o xadrez, como ela lida com perdas. Todos esses tópicos, no entanto, parecem encobertos na vida da personagem pela utilização de substâncias psicoativas diversas – que vão desde álcool até café – para conseguir fins específicos, sejam eles dormir, ficar acordada, relaxar, produzir ou simplesmente não pensar no que está acontecendo. Fica visível ao longo do livro que, em muitas vezes, essa personagem utiliza-se das substâncias psicoativas como uma forma de conseguir fazer o que precisa ou quer fazer, sem entrar em contato com o que sente a respeito dessas situações. Não se trata aqui de julgá-la, é claro, mas de pensar nas consequências que isso traz para sua vida.
O livro vai além de uma personagem principal complexa e profunda, no entanto, trazendo discussões interessantes acerca do machismo no xadrez, a partir das quais reflexões e debates podem ser realizados. O autor também traz discussões acerca de racismo, tematizando preconceitos pelas quais pessoas pretas passam, principalmente dentro do sistema de adoção norte-americano; neste caso, porém, fiquei um pouco incomodada com algumas das maneiras pelas quais a única personagem preta com destaque na história é retratada.
É claro que também não posso esquecer de comentar aquele elemento da história que é absolutamente central na vida de Beth: o xadrez. Este livro contém várias descrições de jogos, principalmente aqueles nos quais Beth participou, o que pode ser extremamente interessante para aqueles que jogam xadrez, ou que são fãs do jogo. Eu, particularmente, tenho um conhecimento quase nulo de xadrez, tendo jogado algumas vezes com meu avô quando era criança, e isso deve ter influenciado no fato de que as vezes fiquei um pouco confusa com as descrições dos jogos, especialmente quando elas tratavam do meio ou do final de algum jogo.
O Gambito da rainha se mostrou como um romance de formação, ou “coming of age”, que traz temas muito delicados e importantes de serem discutidos através de uma personagem principal profunda. Acredito que essa possa ser uma ótima recomendação para os fãs da série que queiram ter um maior aprofundamento na personagem, assim como eu. Pode também ser uma ótima pedida para os fãs de xadrez, que encontrarão jogos performados brilhantemente. Creio, no entanto, que qualquer um que se interesse pelos temas citados nessa resenha encontrará neste livro uma boa leitura e que pode causar reflexões importantes.
- The Queen's Gambit
- Autor: Walter Tevis
- Tradução: Ivanir Calado
- Ano: 2021
- Editora: Arqueiro
- Páginas: 304
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