Meu entusiasmo e carinho pelos peculiares domínios do terror se estende por longos outonos observados em nostálgica visão retrospectiva, por longas noites em claro, onde a mente insistia em retornar aos detalhes de histórias repletas de mistérios ou seres monstruosos. Embora o gênero muito tenha contribuído para a formação do sujeito humano que hoje sou e, ainda que muito aprecie seus experimentos por universos literários, produções cinematográficas e enredos folclóricos carregados de magia, admito pouco conhecer acerca de suas nuances estilísticas, suas inusitadas abordagens, suas características que não cansam de nos surpreender!

Em verdade, ignoro uma infinidade de definições, conceituações e nomenclaturas. Meu relacionamento com o tão adorável terror nunca ultrapassou o período instigante dos encontros casuais. Por esse motivo, a terminologia “camp” pouca significação evocava em meu imaginário. Desconhecia a tendência repleta de associações e recombinações, sua refrescante inserção de ironia ou humor, pouco compreendia de sua estranheza obstinada e estratégias propositalmente familiares… até a chegada de Maligno, novo filme de James Wan.

Nossa jornada cinematográfica se inicia com a inserção angustiante, misteriosa e instigante por entre os limites de uma instalação hospitalar que remete ao mais sombrio, tecnológico e científico castelo de Conde Drácula. Enquanto a lua derrama sua cálida e espectral luminância pelo pacífico exterior do edifício, a equipe de funcionários enfrenta a força descomunal, fúria alucinada e vingança irracional de um paciente que não mais reage aos calmantes. Entre corpos e sangue derramado, acreditamos compreender o destino deste monstruoso ser … ainda que diversas pistas estejam presentes nos eventos que presenciamos com o coração acelerado e foco compenetrado!

Cortamos para novos cenários, personagens e atmosferas. Nossa protagonista, cuja gravidez de risco delineia desafios e dificuldades cotidianas, retorna para o lar após longa jornada de trabalho. Cansada, absorve apática os comentários maldosos, verdadeiramente machistas, de seu parceiro.

Derek demonstra pouquíssimo contribuir com o âmbito financeiro da vida compartilhada entre o casal. Da mesma maneira, expressa instabilidade emocional, verdadeira inabilidade em preocupar-se com a construção de um ambiente saudável para o bebê que em breve nascerá. Com a velocidade de um piscar de olhos, o diálogo se direciona para a tensão palpável, a tensão palpável delineia os caminhos de uma discussão carregada de agressividade e, da unilateralidade desta discussão agressiva descobrimos que Madison convive e sobrevive a um relacionamento abusivo, à violência doméstica que, por entre uma sucessão de eventos surpreendentes, retiram as certezas de sua vida, bem como as promessas de um futuro construído com base nos sonhos que mantinha próximos ao coração. Quando um estranho invade sua casa e assassina seu parceiro, o estresse pós-traumático leva Madison a sofrer de vívidos e perturbadores sonhos. Paralisada, ela observa e acompanha um misterioso assassino ceifar a vida de sujeitos que, a princípio, pouca ou nenhuma relação possuem com sua trajetória de vida, com sua carreira, com seu passado que parece retornar para assombrá-la.

Interligando os perturbadores acontecimentos do misterioso hospital aos angustiantes sonhos que transformam e traumatizam a normalidade do cotidiano de Madison, o longa também conduz uma verdadeira trajetória de sangue derramado por um obscuro assassino. Entre três linhas narrativas aparentemente desconectadas de motivações, inter-relações ou intimas aproximações, o filme constrói uma trama capaz de elevar as expectativas do espectador perante a história que acompanha, o fisgando com infinitas informações ofertadas … as quais podem revelar alguns dos maiores segredos deste adorável presente aos apaixonados pelo universo das histórias de terror!

Maligno é uma sucessão instigante de estranhamento perante cenas e eventos propositalmente revestidos de atmosfera desconexa, propositalmente aparentemente desvinculada dos acontecimentos que balizam os desafios enfrentados pela protagonista. É uma sucessão habilmente construída de breves inserções de humor, criativas ideias para tomadas de cena, posicionamento de câmera e ambientação. É uma sucessão angustiante exposição de informações que expressam as revelações que tanto desejamos desvendar. Trata-se de uma narrativa inteligente em suas pequenas inovações. Trata-se de uma narrativa que homenageia e evoca clássicas cenas, ambientações, caracterização de personagem e enredos deste universo vasto e repleto de possibilidades que denominamos terror. Porém, antes de todo e qualquer comentário entusiasmado e positivo que possa redigir ao longo deste texto, defendo que Maligno, em sua perturbadora leveza de sucessão de cenas, em sua curiosa escolha pela interligação de humor despreocupado à acontecimentos sombrios, insere frescor, abre as janelas de um gênero que, por tantas e tantas vezes, decepcionou e cansou os consumidores do terror mainstream.

Feliz ou infelizmente, contudo, foi o reconhecimento conquistado por anos de direção e produção cinematográfica bem sucedidas que possibilitaram James Wan, não apenas reinserir aspectos e nuances do “camp” no gosto dos espectadores, como demonstrar que muito se pode realizar ao diversificar as estratégias, fugir da padronização e tendências que tanto decepcionam os amantes do terror. Neste ponto, considero relevante destacar que por incontáveis meses mantive distancia do terror, quando elaborado, produzido e compartilhado no âmbito da cinematografia. Os grandes projetos me pareciam mais do mesmo, verdadeiras reestruturações de fórmulas de sucesso, constante repaginação de enredos de fantasmas vingativos, assassinos misteriosos ou grupos de amigos emburrecidos por roteiros falhos. O gênero pelo qual tanto carinho sentia se transformou em verdadeiro estranho. Daí que, do mainstream para as produções alternativas, independentes ou experimentais, necessitei apenas de um piscar de olhos, ainda que estes constantemente retornassem ao mundo das grandes bilheterias, das formidáveis e promissoras produções.

Embora previamente consolidado por diversos projetos ao longo da história cinematográfica do século XX e XXI, o estilo, estratégias e abordagens do “camp” ganham o público por meio do talento e habilidade de James Wan. O modo como sutilmente delineia comentários sociais e culturais à uma trama carregada de humor, estranhezas, mistério e sangue, expressam o cuidado do cineasta para com o compartilhamento de uma obra que não quer classificar-se apenas como “camp” ou mainstream, mas deseja entreter o espectador, surpreender e superar suas expectativas, acolhê-lo com uma narrativa encantadoramente perturbadora sobre assassinos, sonhos paralizantes e eventos carregados de uma impossibilidade fascinantes.

Maligno é encantador em sua ambientação curiosamente aconchegante. Mesmo as cenas noturnas apresentam algo de convidativas, mesmo os momentos de tensão expressam algo de familiar, mesmo as bizarrices e estranhezas do enredo possibilitam uma sensação de retorno ao lar. É peculiarmente inteligente em suas estratégias de construção de narrativa, delineamento de enredo, construção peculiar de personagens. O reconhecimento de detalhes, atmosferas ou elementos clássicos do terror, não apenas fisgam o espectador como o surpreendem por meio de uma sucessão alucinada e instigante de sacadas habilmente estruturadas e posicionadas.

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O longa é maravilhoso por sua ambientação cuidadosa, sua atmosfera sombria e convidativa, seu humor cuidadosamente peculiar, seus efeitos, posicionamentos, movimentações e transições de câmera. É um filme que sabe quando e como trabalhar com efeitos especiais, que encanta pela maneira com que trabalha espaços amplos ou claustrofóbicos, que nos fisga por meio de tomadas que tanto ansiamos terem se estendidos por mais alguns minutos. É um filme que fascina pela atuação, direção, produção e todas as categorias técnicas que possibilitam a consolidação desta apaixonante indústria cinematográfica. Trata-se de um convite para o entretenimento … uma história que não exige profundas reflexões, mas sim o retorno apaixonado ao universo do terror!

Maligno é uma indicação para todos os curiosos pelo gênero que não mede esforços para arrematar novas almas para seus domínios!

  • Malignant
  • Lançamento: 2021
  • Com: Annabelle Wallis, Maddie Hasson, George Young
  • Gênero: Terror, Mistério
  • Direção: James Wan

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