No ano de 2016, com vinte e quatro anos e uma perspectiva literária peculiarmente diversa da que hoje possuo, conheci Toni Morrison por meio da leitura de Voltar para Casa. A escrita habilidosa desta que, com toda a minha admiração afirmo tratar-se de uma das principais autoras norte-americanas do século XX, me surpreendeu, não somente por sua proximidade e demonstração em prosa da realidade e contextos vivenciados pela comunidade negra proveniente de um Estados Unidos preconceituoso e racista, mas também pela maneira como harmoniosamente integra a expressão da linguagem escrita por meio de aspectos de oralidade a elementos que remetem a mais bela e alegórica poesia.

A vencedora de um National Book Critics Circle Award, um Pulitzer e um Prêmio Nobel de Literatura deixou sua marca em meu imaginário e, como não poderia deixar de ser, em meu coração. Naquele ano, prometi aventurar-me por outros de seus livros, outras narrativas que tanto tinham para transmitir, que tanto tinham para revelar sobre um mundo distante e, curiosa e assombrosamente, tão próximo do nosso.

Infelizmente, o universo já tinha seus planos devidamente definidos para essa leitora entusiasmada e apaixonada que volta e meia ressurge para compartilhar experiências de leitura, e precisei de cinco longos anos para me reencontrar com a escrita encantadora desta corajosa escritora. E, talvez, tenha sido melhor assim. Após a finalização de leituras que se transformavam em algo cada vez mais complexo e profundo – seja pelas estratégias que as consolidaram em criação literária ou pela ressignificação que eu lhes oferecia -, após meu encontro com os estudos literários e a certeza de que a eles pertenço, após o amadurecimento enquanto leitora e pessoa no mundo, penso que minha versão anterior não teria aproveitado tanto a leitura de Sula quanto a atual aproveitou.

“Portanto, quando se conheceram, primeiro naqueles corredores de chocolate e depois por entre as cordas do balanço, sentiram a naturalidade e o conforto de amigas de longa data. Já que ambas tinham descoberto anos antes que não eram nem brancas nem do sexo masculino, e que toda liberdade e triunfo lhes eram proibidos, elas passaram a criar outra coisa para ser.”


Indicado ao National Book Award, Sula expõem, de maneira cuidadosa e ordenadamente desalinhada, fragmentos pertencentes as trajetórias de vida de mulheres negras provenientes do Fundão, comunidade periférica localizada na bucólica cidadezinha de Medallion. Oferecida à parcela da população negra que se direcionava ao centro-oeste em busca de melhores perspectivas e oportunidades, tendo em vista a perseguição e desigualdade social dos estados sulistas e a crise que assolava os Estados Unidos em 1920, o Fundão era terra indesejada pelos brancos, desprovida de valor monetário e, portanto, ideal para fixação da comunidade negra.

Ali, gerações e gerações enfrentaram invernos rigorosos, superando o desafio de acesso a instrumentos para preparação e cultivo da terra enquanto buscavam formas de completar outro dia a fim de conquistar o mínimo necessário, desafiando a vontade divina e a magia do universo com o intuito de sobreviver. Foi a garra destas pessoas, sua superação dos infortúnios do mundo, que possibilitou o nascimento de Sula Peace e Nel Wright, garotinhas provenientes de um Fundão razoavelmente estável econômica, social e culturalmente. Frutos de contextos familiares bastante contrastantes, sua criação nunca foi empecilho para a fundamentação da mais adorável e leal relação de amizade.

Sula e Nel foram companheiras de brincadeiras ao longo de toda a infância, descobrindo os segredos do mundo, da cidade e de suas próprias famílias da mesma maneira com que ocultavam seus próprios mistérios, suas próprias parcelas de culpa em acontecimentos infelizes para a comunidade. Complementares, possibilitavam que suas essências transparecessem de maneira pura, livre de filtros e limitações. Suas maldades, bem como suas bondades, seus defeitos, bem como suas qualidades, eram aceitas pela normalidade do convívio cotidiano, deste modo, acompanhando o fluxo das coisas, elas cresceram e amadureceram, seguindo caminhos que, por decisões peculiares do destino, as separariam para sempre, fazendo perecer aquela amizade que tanto proporcionou as garotinhas.

Confira a resenha de Voltar Para Casa

Tecendo, assim, os mistérios da vida, Toni Morrison expressa uma visão melancólica, peculiarmente encantadora e verdadeiramente angustiante da amizade destas garotas que, se vendo mulheres e conquistando o mundo, ou o coração de esforçados e carinhosos homens, delimitam novas realidades para si mesmas, distanciando-se, cada vez mais, das conexões e companheirismo singelo que um dia as uniu. Nesse sentido, é curioso perceber como a narrativa conquista e destroça o coração do leitor, na mesma medida em que reúne garotinhas para, ao fim de suas vidas, destroçar seus corações com o reconhecimento da saudade, da falta que uma faz e fez à outra. Ainda que algumas de suas decisões tenham proporcionado duras consequências para a vida das personagens, impossibilitando a construção de justificativas para uma ou outra, é triste perceber como aquele relacionamento livre de questionamentos e julgamentos sofreu. É melancólico observar, embora de forma fragmentada, as mudanças no relacionamento destas mulheres, as transformações que a vida lhes impõe e os percursos que percorrem.

E por se tratar de uma narrativa que demonstra breves momentos da vida das personagens, a leitura se torna algo ainda mais misterioso! Por entre fragmentos de eventos, memórias e sentimentos, tentamos tecer a ordem dos acontecimentos, preenchendo lacunas acerca de como se deu a separação das personagens, de que maneiras o mundo e a comunidade local influenciaram seu distanciamento. Do mesmo modo, ao longo de trechos específicos, nos questionamos sobre a veracidade daquilo que presenciamos. Isto pois, permeando toda a evolução da narrativa, observamos elementos que remetem à materialização de algo sobrenatural, algo fantástico que infiltra a realidade da ficção, construindo uma atmosfera peculiar, encantadora e repleta de dúvidas acerca da localização definitiva da realidade ficcional e do reino do sobrenatural em toda a comunidade do Fundão.

Harmoniosa demonstração do talento e habilidade artística de Toni Morrison, Sula é expressão dos mistérios da vida, da melancolia que assombra uma amizade que pereceu, da realidade vivenciada por comunidades negras de um Estados Unidos em crise, racista, preconceituoso e desigual. Sula simula a observação distanciada de expectadores da vida, dificultando nossa compreensão completa dos eventos e decorrências por, como na realidade do leitor, nunca seremos capazes de receber todas as informações, recolher todos os detalhes, formular todas as teorias para preencher cada lacuna deixada pela existência humana. Sula é vida e oralidade em prosa, é o mistério de nossa essência na tentativa de ser evidenciado, são os desafios do mundo e as realidades que nos cercam, muitas vezes mascaradas por nossos olhos inaptos para enxergá-las.

Acima de tudo, Sula é a certeza de que a perda, o perecimento de uma amizade verdadeira, que completa e complementa, é uma das maiores dores que poderiam afetar nossa existência no mundo, transformando nossa jornada em algo um pouco mais pesado, um pouco mais difícil de superar e enfrentar, afinal, ao perdermos uma parte de nós mesmos, materializada e constituída na figura do outro, nos perdemos no mundo e, assim, com a realização da perda, tudo se torna um pouquinho mais cinza!

  • Sula
  • Autor: Toni Morrison
  • Tradução: Débora Landsberg
  • Ano: 2021
  • Editora: Companhia das Letras
  • Páginas: 176
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