Aprendendo a viver é uma coletânea de crônicas escritas por Clarice Lispector para o Jornal do Brasil entre agosto de 1967 e dezembro de 1973, reunidas por Pedro Karp Vasquez com o propósito de ser – tal como Vasquez denominou – uma “autobiografia involuntária”. Publicada pela primeira vez em 2004, a coletânea ganhou uma nova roupagem em uma linda edição com capa dura e fitilho, passando a fazer parte da Coleção Clarice Essencial. Ao colocar os olhos nesse primor criado pela Editora Rocco, fui cativada pela oportunidade de conhecer um pouco sobre a vida da autora do meu livro de contos preferido, Felicidade Clandestina, pelos olhos dela mesma. Deparei-me, no entanto, com algo um tanto diferente do que esperava.
Para explicar o que me surpreendeu, no entanto, precisarei falar um pouco sobre a estrutura deste livro. As crônicas de Aprendendo a viver foram reunidas de forma a percorrer momentos diferentes da vida de Clarice: sua infância e adolescência, vida adulta e seus últimos anos de vida. As crônicas que tratam de momentos primevos da vida de Lispector me pareceram se assemelhar ao modelo tradicional de crônica, retratando aspectos da vida cotidiana daquela que narra, e ganhando, ao mesmo tempo, um colorido especial devido ao dom de Clarice de mostrar as profundezas da alma humana mesmo em momentos aparentemente banais. Em acordo com esse teor narrativo, destacarei aqui algumas das minhas crônicas favoritas deste período.
Primeiramente, a crônica que inicia a coletânea, Banhos de Mar, que consegue descrever de maneira tocante os sentimentos que os amantes do mar – como eu – tem ao entrar em contato com ele. Já Restos do Carnaval, presente também no livro anteriormente citado “Felicidade clandestina”, conta sobre as felicidades e sofrimentos de uma jovem Clarice em meio a um carnaval em específico. O Passeio da Família aborda a sensação de se perceber como responsável pela felicidade familiar em meio a um simples passeio em um domingo. A crônica que acredito que mais represente o talento da autora de falar sobre emoções profundas despertadas em situações cotidianas, no entanto, é Medo da Eternidade, que conta sobre a primeira vez em que Clarice mascou chiclete.
Após as crônicas de infância e adolescência, pareceu-me que ocorreu uma mudança um tanto significativa na estrutura das próprias crônicas, que passam a percorrer um de três caminhos: questionamentos existenciais, momentos de introspecção, e textos metalinguísticos e que falam, portanto, sobre o ato da escrita. Nesses textos, a vida da autora aparece como que em frestas, por entre esses temas. Isso é condizente com a preocupação de Clarice em revelar aspectos de sua vida em excesso, tal como a citação no posfácio do livro nos mostra, já que a autora conta que telefonou para Rubem Braga em desespero porque suas crônicas estavam ficando pessoais demais. Trata-se, no entanto, de uma afirmação curiosa, já que ao mesmo tempo que as crônicas de Lispector mostraram apenas pedaços de sua vida, muitas vezes sem grandes contextualizações, trazem também amplas e intimas descrições de sua vida interior, tal como ela a percebia. Podemos certamente nos questionar acerca de qual desses tipos de narrativa conta mais sobre aquele que a escreve, considerando que podemos aprender com facilidade sobre fatos de sua vida dando uma rápida procurada no Google, enquanto a vida interna pertence a uma ordem íntima.
A sugestão de busca em algum mecanismo de pesquisa online não pertence a ordem de uma mera hipótese: foi algo que tive de fazer em alguns momentos do texto, para contextualizar pedaços de informações que Lispector apresentava. Como exemplo, entendi através de uma crônica que Clarice adotou um cachorro quando estava morando na Itália, mas tive que pesquisar um pouco mais para entender que ela estava lá porque seu então marido era diplomata. Assim, recomendo a leitura das crônicas em conjunto com uma pesquisa sobre os fatos marcantes de sua vida, ou acompanhando a seção “cronologia” existente no final desta edição deste livro, com o propósito de facilitar a compreensão daqueles que querem conhecer um pouco mais sobre a biografia da autora. Por outro lado, caso seu interesse seja um mergulho nas profundezas de Clarice, ou conversas interessantes sobre escrita, sugiro dispensar a pesquisa e mergulhar de cabeça na leitura.
De todo modo, apesar de seguirem um estilo diferente do que eu havia imaginado, as crônicas da vida adulta de Clarice se tornaram leituras interessantes e emocionantes, gerando bastante material para reflexão. Creio ser importante ressaltar também que, dentro das crônicas sobre a vida adulta de Lispector, existem também textos que seguem o estilo utilizado nas crônicas de juventude, o estilo que envolve um mergulho na interioridade presente na vida cotidiana e banal. Considerando que esse é meu tipo favorito de crônica, como já deve ter transparecido, gostaria de destacar alguns textos neste estilo que se passam ao longo da vida adulta de Lispector: O Ato Gratuito, Perdoando Deus e Uma esperança. Essas crônicas são, sem dúvida, algumas das mais bonitas que já li.
- Aprendendo a Viver
- Autor: Clarice Lispector
- Tradução: -
- Ano: 2021
- Editora: Editora Rocco
- Páginas: 256
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