Nascida em 1959 na capital londrina, Bernardine Evaristo é uma das mais importantes escritoras negras da atualidade. Seu trabalho trata sempre da figura da mulher de cor na sociedade e da diáspora africana. Há muito advoga a favor da inclusão de autores de cor na indústria literária e artística, criando grupos e agências que favorecem o trabalho de autores negros. Bernardine coleciona prêmios e posições honorárias em sociedades e universidades europeias, vindas principalmente após o lançamento de seu penúltimo e mais conhecido livro Garota, Mulher, Outras de 2019, publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2020.
Através de densos e pontuais capítulos centrados em uma única personagem, Bernardine Evaristo conta sobre dramas comuns e particulares de mulheres negras, afrodescendentes e até pessoas não-binárias, de modo a compor um retrato diverso e complexo da interseccionalidade e da arte contemporânea. Pela enorme diversidade de temas e histórias retratadas ao longo das quase 500 páginas, devo destacar que o único e singular se encontra com o social e comum para ao final compor um coletivo muito além dessas histórias singulares. Garota, Mulher, Outras é de difícil definição em poucas frases, sendo necessário experimentar a obra em primeira mão, mergulhar em cada capítulo, se deixar levar por cada personagem e sua subjetividade. Pois foi assim que me envolvi com o livro e não recomendo fazê-lo diferente.
Começamos lendo sobre Amma, a primeira protagonista e abertura do livro, uma mulher de meia idade que terá a estreia de sua peça no mais prestigiado teatro londrino, uma peça muito importante por retratar uma história africana de amor lésbico entre guerreiras amazonas. Em seguida, passamos para a história de sua filha adolescente, Yazz, e os dramas de se firmar uma ativista da negritude e do feminismo o mais atualizada possível. E então chegamos em Dominique, melhor amiga de Amma, que se envolve em um relacionamento muito intenso e conturbado e parte para os Estados Unidos viver fora da sociedade patriarcal.
Em se tratando de universo diverso e complexo, Bernardine escolhe contar essas histórias através de um estilo que se assemelha ao fluxo de consciência das personagens, descompromissado de pontuação e argumentação com começo, meio e fim de um parágrafo. A novidade desse formato e da escrita de Bernardine me envolveram absurdamente com cada história recheada de vitalidade e conflitos acerca de uma realidade muito distante de mim, uma mulher branca brasileira, mas envolvente o suficiente para me fazer devorar cada capítulo com um fervor pouco comum. Considero que a escolha formal pouco acrescentou ou atrapalhou na minha leitura pois o foco está no conteúdo e nas palavras que expressam ideias muito relevantes para essas personagens que me pareceram tão reais e que pude compartilhar dos sentimentos e dores. Entendo então a escrita livre como uma escolha estilística e possivelmente um manifesto à escrita tradicional que não representa por inteiro essas subjetividades dissidentes e não-tradicionais. É um estilo que estranhei de início, mas que ao final da leitura parece caber perfeitamente à narrativa que Bernardine traça no conjunto total.
Em um livro com tantas histórias diferentes, mais do que esperado que tenha escolhido aquelas que mais me marcaram das 12 apresentadas com profundidade. Não é meu lugar julgar as “melhores” histórias ou as que mais tenha gostado pessoalmente; sim destacar aquelas que melhor demonstram a genialidade da autora em capturar assuntos particulares e comuns à mulher negra londrina e que pode se estender ao sentimento de ser sujeito nessa sociedade cruel com os grupos minoritários.
No capítulo de Dominique, testemunhei uma história de amor conturbada e que aos poucos cerceia a liberdade da personagem sob argumento paternalista e condescendente de “eu cuido de você”. Não há nenhum tipo de julgamento ou moralismo na escrita de Bernardine pois a autora nos faz encarnar os pensamentos e sensações de Dominique que acredita em tudo que sua parceria apresenta, mesmo que isso signifique alterar por completo sua realidade. Já no capítulo de Penélope, a personagem que inicialmente foi introduzida como a professora intransponível e inflexível, ganha uma condição de maior compreensão por poder compreender sua jornada pelos casamentos fracassados e descrença crescente nas gerações seguintes. Toda carga de julgamento que eu havia depositado sobre ela ganha uma nova expressão após ler mais profundamente sobre sua história.
a vida é uma aventura para se acolher com mente aberta e coração amoroso
Bernardine é muito sagaz nas críticas que faz aos movimentos sociais ao apontar suas contradições através das posições das personagens extremamente parciais separadamente, no entanto, como um todo, a obra demonstra sua amplitude e complexidade. Ao começar a ler, não sabia para onde eu seria levada na narrativa, se havia algo que a autora ligaria com essas personagens para além da mensagem ulterior da coletânea interseccional de história femininas. E apesar de Bernardine descrever uma conclusão que amarra os eixos, a força do livro está em mostrar os fragmentos dessas histórias e como leitora adentrar essas subjetividades, ser tomada por elas e ser confrontada com o final quando repentinamente ela decide encerrar essa relação próxima com suas personagens.
Garota, Mulher, Outras não é um livro simples, fácil, pois se propõe a contar histórias de sofrimento, de figuras que se opõem aos valores tradicionais e representações normativas de raça, gênero e sexualidade. Qualquer incômodo e estranhamento é então integral à experiência de leitura, o que demonstra como a obra é essencial nos tempos atuais. Uma leitura que faz movimentar muitas perspectivas sobre as diferentes mulheres que existem na sociedade e que transformou meu olhar enquanto leitora branca.
- Girl, Woman, Other
- Autor: Bernardine Evaristo
- Tradução: Camila Holdefer
- Ano: 2020
- Editora: Companhia das Letras
- Páginas: 496
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