A Filha do Guardião do Fogo, um dos lançamentos de 2022 da editora Intrínseca, é um thriller policial inovador. Ele narra a história de Daunis Fontaine, jovem de dezoito anos muito marcada por sua história de origem. A família de sua mãe é branca, rica e conservadora, e a de seu pai é indígena da comunidade Ojibwe. A diferença grande entre esses grupos familiares, assim como o olhar dos outros ao seu redor, fazem com que a protagonista não se enxergue como plenamente pertencente a nenhum dos dois grupos.

Convivendo com estas questões desde seu nascimento, Daunis vê seus projetos de futuro completamente abalados após a morte do tio e o adoecimento de sua avó. A história se inicia quando a protagonista passa a  encontrar refúgio de todas as mudanças que ocorreram em sua vida na amizade de um garoto novo na cidade. Essa aparente segurança que começa a ser reconstruída na vida de Daunis se desfaz quando ela testemunha um assassinato, o que faz com que ela se veja envolvida em uma investigação do FBI relacionada a tráfico de drogas, e passe a duvidar de tudo que já sabia, assim como de todos ao seu redor.

Um dos aspectos que achei particularmente interessantes desta história encontra-se no fato de que conforme a investigação policial ocorre, a vida da protagonista continua. Suas relações familiares, de amizade e comunitárias permanecem, algo condizente com o que ocorre na vida real, em que não deixamos de nos relacionar com aqueles que estão ao nosso redor, mesmo em momentos tensos de nossas vidas. Além de realista, este aspecto da narrativa permite que acompanhemos em detalhe como as investigações interferem no processo de amadurecimento e entrada na vida adulta da protagonista. Daunis está em um momento de tematizar e compreender seu passado e sua ancestralidade para poder entender qual caminho futuro deseja seguir, e este processo é atravessado pelo luto e pelas investigações policiais.

Não ficamos apenas imersos no processo de desenvolvimento da protagonista, mas também nos personagens que com ela convivem, que se mostram multifacetados e complexos.  É o tipo de história que humaniza todos aqueles que estão participando das investigações policiais, nos tirando do tipo de narrativa dicotômica e superficial em que existe apenas o bem e o mal. Tudo isso permite uma grande vinculação do leitor com o livro e seus personagens.

Outro aspecto interessante da escolha narrativa de acompanhar o dia-a-dia da protagonista é que ela permite que o leitor se informe sobre diversos aspectos da cultura da comunidade Ojibwe da região de Sault Ste. Marie de forma fluida e integrada na história. Aprendemos sobre aspectos culturais extremamente interessantes sem que pareça que estamos lendo um livro didático.

É importante ressaltar que a ênfase dada a construção de personagens, assim como a relações interpessoais e comunitárias, não faz com que a investigação seja menos interessante. Boulley consegue construir um suspense cativante, que faz com que o leitor não consiga desgrudar das páginas para tentar descobrir o que está acontecendo. A escritora mostrou-se especialmente hábil em lançar pistas ao longo da história, tornando possível que o leitor também possa tentar solucionar a investigação, formulando hipóteses sobre o que está acontecendo, sem que a resolução tenha ficado óbvia. 

Desta forma, recomendo enfaticamente este livro por construir uma narrativa cheia de camadas com personagens tridimensionais e bem trabalhados, apresentar um contexto cultural riquíssimo e interessante, e nos envolver no suspense criado por um investigação policial que pode afetar a vida de uma comunidade inteira.

  • Firekeeper's Daughter
  • Autor: Angeline Boulley
  • Tradução: Bruna Miranda
  • Ano: 2022
  • Editora: Intrínseca
  • Páginas: 432
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