Aprofundar-se no universo distópico científico-tecnológico exige uma carga considerável de percepção para detalhes que podem direcionar seus caminhos por entre uma sucessão inusitada de perigos e questionamentos habilmente mascarados por cenários, personagens e sociedades espantosamente embasbacantes. Por esse motivo, requer conhecimento de mundo – se você apresentar certo nível de curiosidade sobre a história da ciência, tecnologia e materialização da distopia no mundo real, adquire uma estrelinha extra.
Além disso, é sempre importante exercitar seu pensamento crítico para tornar o percurso um pouquinho mais divertido, salpicar algumas narrativas desconhecidas que, por motivos misteriosos, permaneceram escondidas por círculos e círculos de escritores, teóricos e leitores que nunca se propuseram a compartilhar este precioso saber distópico com seus círculos e círculos de acesso à informação.
Solitária, perturbadora, maravilhosa e, por vezes desalentadoras é a jornada de qualquer leitor cujos braços da distopia o assumiram para si. Nos primórdios do gênero, quando transitava livremente por entre os limites do real e da ficção, tudo não passava de uma singela nota nesta fantástica e absurda história da humanidade. Afinal, aquela perseguição sistemática a comunidades “diferentes” apresentava bases religiosas e políticas legítimas, ninguém ousaria, no futuro distante, nos classificar como uma espécie explicada, porém não justificada, de vilão, não é mesmo?
Calejados por uma série de incongruências e injustiças, os braços da distopia são calorosos, permitindo que cada novo passo da jornada possibilite uma série de encontros com pensamentos espantosos, mas também encantadores. Assim, avançamos por uma considerável coletânea de clássicos cujas previsões concretizadas e alertas pouco efetivos entristecem os leitores, impulsionam os pesquisadores e preenchem os corações dos estudiosos de um amor esperançoso que não se deixa abalar pela negatividade intrínseca ao tema. Também, assim descobrimos que os corajosos contemporâneos, cuja imaginação vislumbrou consideráveis catástrofes, incompreensíveis sociedades e destemidos personagens, encontrou refúgio e forças nos braços da distopia, esperando pelo dia em que suas imagens e palavras ecoem pela mente de outro, outros e outro leitores.
E, por este caminho textual tortuoso e possivelmente misterioso, desemboco no contemporâneo Estado Elétrico, na descoberta distópica científica-tecnológica que ecoa pela mente desta leitora estudiosa que sonha com o dia em que os alertas, previsões e consequências negativas expostos pela distopia não mais se concretizem! Mas, enquanto esse dia não chega, nos encantamos e espantamos com as ilustrações, textos escritos e universo assombroso de Simon Stålenhag.
Vencedor de prêmios como o Arthur C. Clark e Locus Award, o artista, ilustrador digital e escritor sueco é o nome por trás dos livros Tales From the Loop, adaptado para o formato de seriado televisivo pela Amazon Prime, Things From the Flood, Estado Elétrico – até o momento, único livro traduzido e publicado no mercado editorial brasileiro -, e The Labyrinth.
Embora ineficaz em minhas suposições precipitadas, ao vagar pela maravilhosa quantidade de material visual disponível em seu site, arriscando deparar-me com possíveis spoilers de futuras publicações ou contextos ficcionais predecessores do curioso Estado Elétrico, formulei a teoria de que, embora distanciadas temporal e espacialmente em seu universo ficcional, as histórias publicadas pelo escritor delineiam uma única narrativa: o destino de uma humanidade que ousou apoiar-se cegamente nas promessas de uma ciência e tecnologia que escondiam no lucro e positividade as drásticas consequências que se construíam pouco a pouco.
Se em Tales From the Loop acompanhávamos, com o olhar nostálgico e melancólico, as aventuras e descobertas de crianças por entre as carcaças de robôs abandonados nos mais adoráveis cenários do interior sueco, visualizando a calmaria antes da tormenta, os indícios de que, já naquele momento, o mundo como se conhecia nunca mais seria o mesmo, em Estado Elétrico observamos, abismados, o absurdo e bizarrice das criações humanas.
Se as escolhas de importantes líderes ou os rumos trilhados pela sociedade lhe incomodam, basta conectar-se às infinitas possibilidades da experiência e vivência virtual. Seu organismo não reconhecerá o momento exato em que seus níveis de nutrientes atingirem níveis baixíssimos, seus familiares e amigos não perceberão os efeitos colaterais produzidos pela conexão prolongada, afinal, estão todos interligados a uma vasta rede de irrealidade prometida. Na medida em que seu corpo definha, sua mente permanece conectada, trilhando uma vida inexistente e, em casos curiosos, ainda é possível anexar-se a absurdas estruturas robóticas metálicas, compartilhando pensamentos, sensações e uma vida de alienamento perante um mundo que já não é mais humano.
Num mundo como este, desconectar-se pode representar um grande perigo. Além da perda da humanidade, seres interligados tecnológica e virtualmente à mente de máquinas cujo funcionamento não compreendemos podem realizar ações impensáveis com o único objetivo de aproximar-se, ainda que irracionalmente, de sentimentos e sensações perdidos. A comida se tornou escassa, inimigos se escondem por todos os lados e, trilhando uma jornada peculiar, acompanhamos uma garota em busca … de algo, alguém, uma promessa ou oportunidade que, talvez, não seja aquilo que esperávamos e nem mesmo aquilo que ela esperava.
E assim caminhamos por entre os limites, detalhes, nuances e características do universo criado por Simon Stålenhag. Acompanhamos assombrados, incapazes de qualquer mudança promover nos direcionamentos da narrativa, as mudanças de cenário, os retornos a acontecimentos e informações do passado, os perigos habilmente superados e os encontros impossíveis da jornada de uma garota que desconhece, ou talvez não compreenda, a complexidade de escolhas, consequências e ações que, curiosamente interligadas, permitiram que seu mundo fosse destruído e uma tênue promessa lhe fosse oferecida. Observamos, encantados pelo talento artístico e pertinentes críticas, a maneira como o artista e escritor alinha enredo, universo, mistério e crítica em uma narrativa instigante que, por si mesma, é capaz de alojar-se em nosso imaginário para sempre!
Enquanto alguns se perceberão deslumbrados pelas ilustrações digitais de Simon Stålenhag, outros absorverão suas palavras com olhos e mente aberta, abismados pela hiper-realidade que associa meios visuais e verbais para nos fazer pensar, repensar e refletir. E, se neste caminho tortuoso você reconhecer as críticas sociais, os questionamentos filosóficos, as reflexões essencialmente humanas, então receberá uma estrelinha extra pelo esforço. Pois Estado Elétrico é repleto de camadas e cada uma se complementa para construir um universo no qual não gostaríamos de viver, porém, do qual não pretendemos sair.
- Passagen
- Autor: Simon Stålenhag
- Tradução: Daniel Galera
- Ano: 2022
- Editora: Quadrinhos da Cia
- Páginas: 144
- Amazon