Sadie Green conheceu Sam Masur no Hospital Infantil de Los Angeles quando tinham entre oito e dez anos de idade. Ela perambulava cabisbaixa pelos corredores quando um enfermeiro sugeriu que esperasse no espaço de convívio, onde poderia jogar vídeo game ou brincar com peças e brinquedos disponíveis para os pacientes e seus acompanhantes. Sentado sozinho, jogando algo entre Donkey Kong e Mario Bros. ela encontra Sam, um garoto cuja dificuldade em relacionar-se com adultos e crianças o tornava particularmente problemático.

Enfrentando o luto pela perda da mãe e as consequências de um acidente que causou severos danos ao seu pé, o menino antissocial percebe uma amiga em Sadie, firmando uma amizade que, um ano no futuro, estaria em risco de extinção por meras inconstâncias e incertezas da idade.

“Porque uma vez, quando eu estava no meu pior momento, você me salvou. Porque eu poderia ter morrido sem você ou acabado em um hospital psiquiátrico infantil. Porque eu devo isso a você. Porque, de uma forma egoísta, vejo um futuro em que fazemos jogos fantásticos juntos, se você conseguir sair dessa cama.”

Os anos passaram e aqueles que um dia foram amigos inseparáveis, unidos pelo amor aos jogos digitais, quase não se reconhecem ao esbarrarem pelos corredores do metro da fria e indiferente cidade de Boston. Mas o tempo, o sentimento de amor que somente uma verdadeira amizade é capaz de evocar, decidiram que Sam e Sadie precisavam de outra chance, oferecendo um encontro que firmaria, para sempre, os delicados laços uma vez estabelecidos pelos vídeo games.

Na medida em que rumam para os períodos e disciplinas finais de seus cursos de Matemática e Design de Jogos, respectivamente, os protagonistas de Amanhã, amanhã e ainda outro amanhã alinham seus objetivos à criação daquele que viria a se transformar num dos mais importantes jogos que a sociedade fictícia desse livro adoravelmente inspirado no contexto e universo dos jogos digitais – reais –  já recebeu.

Na medida em que suas ambições crescem, seus conhecimentos sobre criação de games se eleva e a fama os impulsiona para possibilidades inimagináveis, acompanhamos uma narrativa de evolução de personagem que busca refletir a vida, nossas relações e escolhas … por meio de cenários que poderiam ser realidade, se não fossem ficção.

Antônio Candido, importante sociólogo e crítico literário brasileiro, uma vez escreveu que a literatura é poderosa por simular a vida por meio daquilo que inexiste, da realidade irreal que se transforma em algo palpável através de tudo o que existe na ficção. Quando iniciamos a leitura de um livro, sabemos tratar-se de uma mentira. Reconhecemos que se trata de uma sucessão de palavras dispostas por uma pessoa que precisou pensá-las e organizá-las a fim de que fossem recebidas por um leitor.

Faz parte do encanto da leitura de ficção reconhecer que, embora o que estamos prestes a acompanhar não passe de uma adorável história, a mentira se tornará verdade pelo tempo que precisarmos levar para finalizar a leitura. A vida pulsa pelas palavras de um livro pois ele nos fisga e brinca com as nuances e os limites entre realidade e ficção… mas, quando um livro de ficção nos lembra constantemente que ele, verdadeira e inegavelmente, se trata de um livro de ficção, a experiência de leitura, as reflexões e mensagens podem se perder. E é desta maneira que observo Amanhã, amanhã e ainda outro amanhã.

Constantemente, na medida em que avançava por seus parágrafos e capítulos, era lembrada e relembrada de que aquilo que lia não passava de uma história elaborada por uma premiada escritora que tem suas histórias publicadas em quase quarenta idiomas. Da constante repetição de detalhes ou elementos que não incorporavam os direcionamentos da narrativa até a maneira com que, ao considerar em excesso as dimensões do público que buscava atingir, a escrita peca pela reapresentação e reafirmação de características, informações e contextos, recordava estar lendo um livro … e nada mais que um livro.

Não me foram oferecidas chances de interpretação, não me foram delineados contextos em que pudesse formular visões e percepções acerca de suas problemáticas ou injustiças, tudo me era constantemente explicado. Neste sentido, o narrador trabalha de maneira a auxiliar o leitor que pouco conhece sobre o cenário da criação de jogos digitais a compreender suas realidades e contextos, mastigando informações de maneira com que pouco espaço sobre para que sua consciência crítica e interpretação sejam ativadas.

Ao expressar que o cenário era majoritariamente masculino entre os anos 1990 e 2000, a escrita segue para a afirmação de que se trata de um campo machista, sexista e problemático, sendo uma considerável conquista para Sadie, estar nesse meio e, ainda, ser reconhecida.

O problema é que, da maneira como tudo se apresenta, aquilo que seria óbvio ou, aquilo que poderia ser interpretado e reconhecido pelo leitor, relacionando a realidade à ficção que lê, vem mastigado. E não existe sentimento pior do que sentir que uma narrativa literária ou história em quadrinhos – e aqui relembro o triste exemplo de Creepshow – descarta a inteligência do leitor. Pois, enquanto leitores, somos capazes de perceber nas entrelinhas que tudo aquilo que Sadie passou, muito mais do expressar sua falta de preparo e maturidade, é reflexo de uma sociedade e de um campo extremamente machista e sexista.

Na medida em que o descontentamento com a leitura crescia, contudo, nasceu também a frustração de perceber diversos assuntos relevantes para a contemporaneidade sendo abordados de maneiras que seguiam desde o aprofundamento e naturalidade com que eram alinhados à narrativa, até a despretensiosa menção e carência de relação com qualquer evento do livro … e a incapacidade da escritora de perceber a preciosidade que construiu!

Ao que tudo indica, sem a intenção de verdadeira e conscientemente o fazer, Gabrielle Zevin delineia nos comportamentos, percepções de mundo e das coisas, ações e pensamentos de Sam Masur, uma orientação intrínseca e intimamente voltada ao espectro ace – assexual para os leigos.

No mais irônico e triste exemplo de “a arte imita a vida e a vida imita a arte”, Amanhã, amanhã e ainda outro amanhã invisibiliza a existência e nuances da orientação, expressando pensamentos claramente ligados ao espectro sem o nomear, considerar e, quem diria, validar.

Aqui não se trata de valorizar uma amizade de anos, a possibilidade de existência de amor entre pessoas que não possuem qualquer atração romântica ou sexual entre si, uma vez que tanto já se fez nesse âmbito e tanto já se avançou nessas questões por meio de ótimos e encantadores livros. Trata-se de reconhecer a construção e detalhamento de um personagem cujos pensamentos e vivências correspondem aos de pessoas e leitores reais, constantemente invisibilizados por uma sociedade altamente sexualizada, como muito bem aponta nosso protagonista masculino, e que, como tal, ignora sua existência, priorizando assuntos tais que não possuí fôlego para abordar, aprofundar e trabalhar em narrativa e ignorando uma oportunidade escancarada. Mas, talvez, Gabrielle Zevin e seus editores não estejam, efetiva e realmente, preparados para debater esse assunto!

Amanhã, amanhã e ainda outro amanhã seria um livro maravilhosamente encantador, caso não lembrasse sua leitora, ao longo de toda e cada oportunidade, que está lendo uma história mentirosa sobre pessoas que não existem. Seria um livro sensível e adorável, caso considerasse a inteligência crítica e interpretação do leitor a seu favor, abrindo espaço para que formule suas próprias percepções daquilo que lê. Seria um livro tocante e pertinente, caso suas oportunidades fossem aproveitadas, suas temáticas sociais fossem melhor trabalhadas e verdadeiramente estivessem interligadas à narrativa e aos rumos que toma.

E, mesmo com todos os meus apontamentos, incontáveis comentários de leitores no Goodreads demonstram ser possível encontrar encantamento, reflexões e valor na leitura, provando que leitores diferentes, com experiências, gostos e conhecimentos diferentes, receberão as mais infinitas e curiosas experiências de um mesmo livro. Tudo dependerá do tipo de leitor que você é!

Avaliação: 3 de 5.

  • Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow
  • Autor: Gabrielle Zevin
  • Tradução: Carol Christo
  • Ano: 2022
  • Editora: Rocco
  • Páginas: 400
  • Amazon

rela
ciona
dos