Minha memória costuma falhar quando preciso relembrar períodos temporais específicos ou localizar momentos determinados em meio aos confusos limites das lembranças que insistem em parecer ocorrer ao mesmo tempo e sucessivamente, como se as estações não tivessem passado e nada estivesse curiosamente distanciado temporalmente e neurologicamente em algum ponto de meu cérebro. Por esse motivo, sinto dificuldade em afirmar sucessões de momentos, interligar períodos específicos de minha vida e pessoas que percorreram essa terra maravilhosa em algum momento de suas trajetórias existenciais.

Como se não bastasse essa introdução confusa e filosófica, pertinentemente inspirada no estilo de escrita de um livro que não sei classificar, também não tenho a mínima certeza sobre quantos meses se passaram desde a última vez em que tive a oportunidade de finalizar uma leitura com número de páginas reduzido, mas que, ao mesmo tempo, fosse tão profunda.

“[…] e agora ela não deve pensar, como pensou com tanta frequência, que tanto poderia fazer aquilo, que tanto poderia fazer aquilo como qualquer outra coisa, ela pensa, e então ela para e olha para um ponto mais ou menos no meio do Fiorde e se perde olhando justamente para aquele ponto e vê, do banco onde está deitada, a si mesma parada defronte a janela”

É a Ales é exata e peculiarmente, o que passei uma hora buscando expressar no primeiro parágrafo desta resenha. Escrito por Jon Fosse, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, um certo norueguês que até então desconhecia, o livro é uma imersão profunda nas memórias residuais de uma viúva que revive, ao longo de sucessivas décadas ou no ínfimo limiar de um breve momento, detalhes circunstanciais que marcaram a vida e trajetória da família de seu falecido esposo. Mas, talvez, essa seja a história de uma casa que revive, sucessiva e constantemente, as vidas das gerações de uma família que ali reside por anos e anos.

De uma maneira ou de outra, acompanharemos o momento em que um esposo saiu para um passeio de barco pelas geladas águas do Fiorde e não mais voltou. Observaremos uma viúva que permanece diante da janela, esperando alguém que nunca mais retornará, ao mesmo tempo em que observa a si mesma deitar-se num banco no cômodo aquecido da antiga casa.

Nos assombraremos com o momento em que uma mãe, após segundos de distração, percebe que seu filho se afoga nas águas do Fiorde. Nos acalentaremos com a notícia de que mãe e filho, seguros após braçadas cansativas pelas densas águas, seguem em direção ao calor da estufa que mantém a antiga casa aquecida. Retornaremos à viúva que permanece diante da janela, esperando alguém que nunca mais retornará ao mesmo tempo em que observa uma avó cozinhando para seu neto. Assim, por entre momentos que se intercruzam e uma narração que se divide entre um fluxo de consciência e a fragmentação de tempo e espaço, recolhemos breves momentos das vidas de uma família norueguesa.

Apesar da complexa profundidade narrativa e aparente experimentalismo de escrita, É a Ales foi uma experiência surreal. Sem aviso, o livro te fisga e carrega por entre as estradas de uma pequena vila norueguesa, os imensos campos e profundas águas do Fiorde, o calor da sala de uma antiga casa de família. Tudo ocorre ao mesmo tempo e sucessivamente, simulando o pensamento de uma pessoa que está em todos os lugares ao mesmo tempo, ou os olhares do universo perante os infinitos e preciosos ponto espaço temporais que compõem passado, presente e futuro humanos! Parece caótico e confuso, mas funciona de uma maneira adoravelmente perfeita, graças a habilidade literária de Jon Fosse… e talvez seja por isso que ele recebeu seu Prêmio Nobel de Literatura!

É a Ales é aquele livro contemporâneo com cara, cheiro e estrutura de clássico. É complexo em suas estratégias de escrita sem deixar de lado o cuidado em manter seu leitor constantemente instigado e imerso. É fluído na maneira como se recusa a empregar pontos finais ou a estrutura estagnada da gramática tradicional, provocando um estranhamento que apenas corrobora com as infinitas possibilidades de interpretação e leitura. É a prova de que, em literatura tanto quanto na vida, a diversidade permite que cresçamos enquanto seres humanos, nos permitindo olhar para palavras, seres e momentos com olhares renovados, como o frescor de uma brisa que nasce das águas do Fiorde em direção à janela de uma antiga casa que resistiu ás intempéries de gerações e gerações.

Avaliação: 5 de 5.

  • Det er Ales
  • Autor: Jon Fosse
  • Tradução: Guilherme da Silva Braga
  • Ano: 2023
  • Editora: Companhia das Letras
  • Páginas: 112
  • Amazon

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