Começamos por esclarecer alguns pontos: o longa-metragem protagonizado por Margot Robbie e dirigido por Greta Gerwig não oferece ao espectador as mais puras e inovadoras estratégias de inovação artística cinematográfica. Excluindo do campo de debate os conceitos e contornos filosóficos acerca da dificuldade, para não dizer impossibilidade, de existência da encantadora ideia publicitária de “novidade e inovação”, além das nuances elitistas sobre a “verdadeira arte” e como deve expressar complexidade, profundidade e sublime capacidade de mimetizar aspectos da vida humana, resta-nos abordar os méritos de um filme que, aproveitando-se de um objeto popular, encontrou a oportunidade ideal para cativar corações e atingir um público que supera números e barreiras temporais geográficas.

Sabe aquela velha história do “ela não tem o apoio da academia, mas ela tem o povo”? Barbie, com sua linguagem acessível, simples estratégia de comunicação e facilidade de estabelecimento de conexões, é o exemplo de que a arte também pode ser e voltar-se para algo um tanto quanto mais “popular”.

A narrativa tem início no rosado, artificial e adorável mundo da Barbie. Por entre casas rosa chiclete, carros rosa choque e figurinos de tirar o fôlego, acompanhamos uma diversidade de corpos, cores e estilos de Barbies em suas diferentes profissões e rotinas. Todos os dias nesse universo que remete aos mais variados contornos das brincadeiras de criança, são iguais. Barbies fingem se alimentar, fingem tomar banho, escolhem as roupas mais belas de acordo com suas personalidades e atividades, interagem superficialmente e firmam relacionamentos que, embora reconheça-se a presença de Kens, mantém-se no limite da amizade.

Nada mudaria nessa realidade de faz de conta, caso a Barbie interpretada por Margot Robbie permanecesse em seu estado de boneca, ignorando os contornos de existência que permeiam sua vida, as perguntas existenciais que martelam em sua mente e a sensação de que algo mais se insinua para além do horizonte.

Ao destoar do comportamento “padrão” e fazer perguntas que incomodam o harmonioso estado de coisas da Barbieland, Barbie transforma-se num “perigo” para a comunidade. Sem respostas e imersa nesse acelerado processo de remoção das névoas que encobriram sua visão, ela é direcionada para o mundo real, onde, espera-se, terá a oportunidade de encontrar todas as respostas que deseja.

Na medida em que a boneca percorre o mundo responsável por sua criação, acaba por instigar o surgimento de características humanas no que, momentos antes, não passava da mais peculiar representação material das concepções sócio culturais de meninas, adolescentes e mulheres adultas. A Barbie, no misterioso e conturbado mundo real, é tão mulher quanto as mulheres de carne e osso, desta forma, transforma-se em vítima dos olhares e comentários misóginos e machistas de uma sociedade acostumada a encarar mulheres como objetos, ou seres cujas habilidades e capacidades encontram-se em patamares menores devido uma lista infinita de justificativas deturpadas que tomam por base pseudo pesquisas e saberes científicos, políticos e econômicos.

Em sua trajetória, ela vacila pela vontade de retornar para a ignorância, ou seguir pela jornada conflituosa que, não apenas será capaz de ampliar sua visão das crenças e regras dúvidas da realidade, como transformarão para sempre sua essência e toda a Barbieland.

Nesse sentido, a narrativa de Barbie se aproveita da conhecida fórmula – utilizada por clássicos aclamados pela crítica, mas também por clássicos aclamados pelo povo – da Jornada do Herói. Com seu coração desestabilizado pelas dúvidas que não param de surgir, a personagem inicia uma jornada de desafios e conflitos que, aqui, não confrontam somente sua existência mas também todos os limites do mundo que conhecia. Na medida em que supera as dificuldades, interioriza lições e torna-se um veículo para transmissão de novas e distintas mensagens, a boneca retorna para o ponto de partida, expandindo as mudanças de seu interior para o exterior, trilhando, por fim, os passos que a levarão para a recompensa final.

Como tantas outras boas histórias, que pouco ou nada precisaram dos selos de “novidade e inovação”, a qualidade e mérito do filme está no conhecimento das fórmulas e estratégias narrativas e na maneira como as adaptam para criar algo capaz de divertir, cativar e questionar elementos do universo que nos cerca.

Boas histórias não precisam de muito, além de bons contadores e bons ouvintes, para encontrar morada em nossos corações… é por esse motivo que tantos clássicos foram desmerecidos pela crítica elitista e especializada, em sua época, e redescobertos anos mais tarde por olhares gentis que os observaram com diferentes perspectivas.

Barbie não inova a estrutura clássica da jornada do herói, muito pelo contrário, segue a estrutura habilmente utilizada por todas as suas tias e tios, primas e primos, avós e avôs. Seguindo a trilha pavimentada pelos vulgos cânones, a protagonista magra, loira de olhos azuis, representação do padrão de beleza contemporâneo, difere e conquista não por quesitos técnicos como fotografia, iluminação, coloração ou cenário, mas por ousar simplificar a linguagem, ampliar a acessibilidade de comunicação e, dentro dos limites aqui existentes, democratizar a mensagem para que meninas, adolescentes, mulheres adultas e até mesmo senhorinhas possam apreciar o filme da companheira que compartilhou sua infância, enquanto percebem mensagens que podem, ou não, transformar suas visões de mundo.

Barbie não precisa de uma estrutura complexa, linguagem profunda, diversas analogias e metáforas para conquistar. Barbie não objetiva modificar para sempre o cinema, não quando o cinema, como a literatura e as artes, tanto excluiu e desconsiderou experiências e vozes de mulheres provenientes de todos os contextos e vivências imagináveis. Parece-me que suas intenções são tão simples e honráveis quanto os mais emocionantes filmes de guerra ou longa metragens inspirados em acontecimentos reais. Aqui buscou-se entreter e cativar o público enquanto se transmitia conceitos batidos do movimento feminista, e, se pensarmos no quanto se falou e no quanto se assistiu, parece-me que o filme atingiu seus objetivos.

Desnecessário e um pouco óbvio ressaltar que, num filme baseado em bonecas provenientes de mundos cor de rosa, cuja faixa etária é ampla e cuja linguagem pretende fazer-se acessível mesmo para públicos não letrados em cinema, muito se deixou de fora das pautas de discussões. Aqui não se abordam desafios enfrentados por mulheres e meninas refugiadas de países em guerra, não se destacam as maneiras como o machismo e a misoginia são vivenciadas por mulheres negras, indígenas e transexuais, não se expressa como mesmo dentro do movimento feminista existem exclusões e o quanto se luta para que as vozes sejam somadas a fim de fortalecer ainda mais suas pautas e princípios. Barbie é um longa metragem protagonizado por uma mulher branca, dirigido por uma mulher branca, roteirizado por um homem branco… conta com uma diversidade encantadora de nomes no elenco sim, mas, ainda assim, trata-se de um filme que oferece o básico de um movimento complexo e cuja história ainda tem muito a oferecer.

Se quisermos criticá-lo por isso, seguimos em frente e passamos horas destacando sua problemática. Mas também podemos valorizá-lo por abrir as portas e simplificar as mensagens de um movimento ainda muito criticado e combatido. Se buscarmos compreendê-lo como um filme que congrega gerações a fim de possibilitar que entendam suas mensagens e respeitem suas trajetórias, então, talvez, possamos garantir que todo o resto do movimento seja visto e recebido com os mesmos olhares gentis, respeitosos e receptivos! E aqui encontramos seu mérito.

Como a cena, tão singela e delicada que emocionou tantos espectadores, tão bem nos faz compreender, por vezes podemos não saber como sentir, como nos sentimos, porque existimos ou para o que existimos … mas em algum momento, a qualquer momento, descobriremos. Gerações de mulheres passaram por situações com as quais não podemos imaginar. Gerações de mulheres passarão por situações com as quais, também, não podemos imaginar. Gerações de mulheres enfrentaram sua cota de desafios para que, hoje, possamos enfrentar nossa cota de desafios e tornar o mundo um pouco melhor para as gerações que virão… mas esperamos que, ao contrário de gerações de mulheres que olharam para trás com julgamento e crítica, possamos, como tão singela e delicadamente insinua a cena que emocionou tantos espectadores, olhar para o passado com respeito, gentileza e acolhimento, esperando que o futuro nos ofereça o mesmo tratamento, afinal, não estaríamos aqui se não fosse por toda a diversidade de pensamentos, corpos, cores e amores que permeiam a vida das mulheres.

Num mundo que ainda reforça ideias que visam nos desqualificar e inferiorizar, que estabelece ambientes propícios para nos desrespeitar e violar, sejamos a força que acolhe outras com gentileza, simplicidade e acessibilidade. Sejamos aquelas que aproximam culturas e diminuem as distâncias cuidadosamente construídas por uma elite de acadêmicos, teóricos e especialistas incapazes de ver a beleza no que se transforma popular, pois o popular comumente é excluído e desvalorizado pela elite. É o que fez a Academia e os pseudo letrados em cinema durante boa parte de sua trajetória, sem contar em todas as artes e literaturas que esse mundo já viu. Mas não mais… embora, em momento algum, acredite ou anseie pela vitória do filme, ele já cumpriu seu papel belamente, agora deve abrir espaço para que novas vozes escutem e se pronunciem, reforçando a ideia de que nosso mundo vai muito além do cor de rosa.

Avaliação: 4 de 5.

  • Barbie
  • Lançamento: 2023
  • Com: Margot Robbie, Ryan Gosling, Issa Rae, Hari Nef
  • Gênero: Fantasia; Comédia; Aventura
  • Direção: Greta Gerwig
  • Duração: 114 mintos

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