Mickey Barnes está em sua sétima versão quando, na tentativa de efetivar alguma espécie de reparo indispensável para a vida da colônia, cai de grande altura, sofre algumas contusões e é deixado para morrer, abandonado por aquele que, supostamente, tratava-se de seu melhor amigo.
Felizmente, para Mickey Barnes número sete, os machucados não foram graves e, após superação da dor e tomada de uma dose de coragem, ele consegue encontrar seu caminho de volta através de uma longa caminhada por tuneis alienígenas. Infelizmente, para Mickey Barnes número sete, a colônia seguiu os procedimentos padrão após recebimento do relatório de Berto e produziu a versão número oito de Mickey Barnes.
“Oito está sentado agora, inclinado para a frente com a cabeça apoiada nas mãos. Sei como ele se sente. Acordar diretamente saído do tanque é como a pior ressaca do mundo, com um pouco de lepra e de doença por descompressão misturadas para dar sabor.”
Acontece que nosso personagem principal é um prescindível. Isso significa que ele abandonou seu planeta natal, aceitou participar de uma missão de exploração e colonização planetária, ofereceu cópias de DNA e constituição cerebral para a geração de futuras cópias de si e, direta ou indiretamente, concordou em participar de todo tipo de atividade perigosa, possivelmente suicida, que surgisse ao longo da jornada espacial e construção de nova colônia planetária.
Em resumo, sua vida não está sendo fácil. Ele já enfrentou quantidades absurdas de radiação, efetivou reparos no espaço aberto, foi infectado por parasitas alienígenas, enfrentou seres nativos do planeta colônia e, quando mais precisava, foi abandonado para morrer como a peça descartável que muitos acreditam ser. O problema é que ele cansou dessa brincadeira… o problema, também, é que as leis de expedição interplanetária, mas também a quantidade de recursos disponíveis na colônia, não permitem a existência de dois prescindíveis ao mesmo tempo. Em resumo, Mickey 7 e Mickey 8 estão com um verdadeiro problemão!
Após breve pesquisa comparativa da experiência de leitores de língua inglesa, com minha experiência de leitura do texto traduzido para português, sinto certa alegria em informar que a tradução não apenas buscou respeitar as características do texto fonte, mas também trabalhou com habilidade uma característica da ficção científica que é: deixar certos elementos, conceitos ou terminologias a cargo do leitor. Eles que busquem compreender, sozinhos, o que determinado trecho significa.
Isto posto, resta dizer que Mickey 7 é uma ficção científica espacial adorável e bem humorada, com escrita leve e instigante, acessível e direta, detalhada na medida certa e estranhamente enigmática – no sentido de que você passará boa parte da leitura buscando compreender como todas aquelas informações se interligam com a trama principal.
Seu universo narrativo é complexo e repleto de pequenos detalhes, contextos passados e segredos que podem, ou não, influenciar a trajetória de um protagonista cansado de morrer e relembrar as maneiras como são poucas as pessoas que verdadeiramente se importam com ele.
Das causas que direcionaram à saída do ser humano do planeta terra à formação de colônias planetárias. Das motivações do personagem para abandonar tudo e tornar-se prescindível aos relacionamentos que mantém com membros específicos da equipe. Das memórias de suas mortes anteriores, histórias de fracasso de colônias determinadas, até os curiosos seres alienígenas que dividem espaço com a colônia humana num distante e perturbado planeta, tudo contribuí para a construção de uma história instigante que pode sim ser interpretada conforme anseio do leitor. Contudo, o livro é pura e simplesmente uma leitura de ficção científica divertida, que entretém e instiga o leitor, sem, necessariamente, debruçar-se sobre problemas intrínsecos a vida humana, suas relações com ciência e tecnologia ou as consequências imprevisíveis de nossas escolhas.
Mickey 7 me possibilitou lembrar que ficção científica pode sim senhor, ou senhora, constituir-se em histórias divertidas, bem humoradas, capazes de te entreter pelo simples e encantador objetivo de entreter! Retomando uma vertente que se alinha aos primórdios da trajetória da ficção científica, Edward Ashton presenteia o leitor com um livro de fácil entendimento, repleto de momentos ou sacadas engraçadas, além de pequenos mistérios que vão encontrando soluções aos poucos, permitindo que o leitor aproveite cada capítulo e enxergue todo aquele mundo (im)possível diante de seus olhos.
Muitos comparam Mickey 7 com Perdido em Marte. Penso tratar-se de uma comparação questionável, uma vez que aqui não encontramos as mensagens inspiradoras, fundamentação teórica pesada e piadas espirituosas de Perdido em Marte. Entretanto, encontramos sim uma história cativante que acolhe diversos leitores, sejam eles apaixonados pelo gênero ou não. Por esse motivo, se você busca um livro para entender porque tantos leitores amam e defendem essa tal de sci-fi, talvez este seja um bom livro iniciar sua jornada.