Ray Bradbury escreveu aproximadamente cinquenta livros ao longo de sua carreira, presenteando o mundo com narrativas surpreendentes e instigantes como Fahrenheit 451, Algo Sinistro Vem Por Aí, O Homem Ilustrado e Crônicas Marcianas. Com estilo característico e uma espécie de carisma que tanto encanta quanto desagrada leitores, o escritor constrói histórias que nos confundem em sua sucessão caótica de acontecimentos, nos impulsionam a virar páginas e páginas a fim de descobrir o final da trama e, acima de tudo, nos permitem refletir sobre nuances e detalhes do maravilhoso e conturbado mundo em que vivemos.
Ao avaliarmos sua trajetória, tornam-se mais claros os motivos pelos quais conseguiu marcar para sempre o seu nome na história da produção literária estado unidense e naquilo que conhecemos por clássicos da literatura do século XX.
O que alguns leitores desconhecem, é o fato de que, antes de consolidar-se como escritor, durante muito tempo Ray Bradbury trabalhou como roteirista de cinema. Ao que parece, as vivências na indústria cinematográfica possibilitaram muito mais do que a nomeação de adaptações ao prestigiado Academy Awards (Oscars), conquista de um Emmy pelo roteiro de The Halloween Tree, experiência com criação de narrativas ou amadurecimento de seu estilo como contador de histórias… os anos roteirizando e adaptando projetos para grandes estúdios também lhe renderam a construção da Trilogia de Hollywood, sequência de livros que ficcionaliza detalhes dos bastidores da “Era de Ouro” do cinema estadunidense em meio a tramas de mistério e investigação recheadas de reviravoltas e críticas a maneira como o sistema de produção vinha se estruturando.
“Eles amam tanto a vida que, em vez de destruí-la, eles ficam atrás de um muro que eles mesmos fizeram para se esconder. Eles fingem que não ouvem, mas ouvem. Fingem que não veem, mas veem.”
Sequência de A Morte é um Negócio Solitário, Cemitério de Lunáticos é narrado por um talentoso e sonhador roteirista, indicado para vaga na Maximus Filmes, responsável por alguns dos principais filmes lançados entre as décadas de 1920, 1930 e 1940. Junto de seu amigo e colega Roy Holdstrom, especialista na criação de cenários, protótipos e criaturas monstruosas, nosso narrador vem trabalhando em projeto atrás de projeto até receberem a missão de criar a mais assustadora e assombrosa história de terror.
Desconhecendo os segredos por trás da trajetória do estúdio, os dois se deixam levar por uma série de recados que sugerem o encontro ou descoberta de uma figura humana, a fera mais bizarra que seus olhos já vira, capaz de gravar para sempre seus nomes na indústria do cinema! Pouco sabiam que, ao visualizarem a aparência grotesca da pobre criatura, também se tornariam alvo de uma conspiração que, durante anos, vem eliminando toda e qualquer prova da polêmica e mistério por trás da morte daquele que construiu e consolidou o império que, hoje, é a Maximus Filmes!
À medida que o narrador observa a suspensão abrupta de projetos em andamento, a destruição aparentemente desproposital de todas as criações de seu colega, além do desaparecimento de profissionais ligados ao estúdio, desenvolve-se uma trama de intrigas, mistérios e encobrimentos que vai muito além do fatídico acidente que tirou a vida de James Charles Arbuthnot, envolvendo diretores, atrizes e magnatas da indústria cinematográfica no mais belo caos que, apenas será resolvido após muito confronto entre ficção e realidade, roteirização e aleatoriedade… além de um pouquinho de assassinato!
Cemitério de Lunáticos é um típico livro de Ray Bradbury! Aqui encontramos uma habilidosa intercalação de capítulos que impulsionam o leitor a, não apenas encontrar novas informações sobre a trama que se desenrola diante de seus olhos, mas também garante que possua sempre aquela gostosa sensação de ter finalizado outro capítulo … ainda que tenha somente três páginas.
Aqui observamos a talentosa maneira com que o escritor costura sequências de eventos de modo a posicionar reviravoltas num enredo que, para além do debate acerca de ser datado ou não e por entre características que remetem a produções clássicas de Hollywood, são tão divertidas e inusitadas que nos fisgam do início ao fim, produzindo uma atmosfera enevoada onde tudo é capaz de te confundir. Aqui, numa sacada de mestre, o escritor se aproveita do espaço ficcional para brincar com as intersecções entre realidade e ficção, confundindo o leitor ao transcorrer descrição de ambientes, acontecimentos e diálogos em locais que, por serem reais, permitem a criação de ficções que quebram recorde de bilheteria.
Da sucessão de imagens visualizadas pela retina do personagem narrador, dos diálogos roteirizados como em clássicos filmes de mistério estadunidenses até a maneira como os sets de filmagem viram palco para a descoberta de segredos cruciais para a resolução do mistério, tudo é uma constante e instigante brincadeira entre o modo como realidade se transforma em ficção que se transforma em realidade novamente.
Para fechar com chave de ouro, Ray Bradbury posiciona de maneira habilidosa, coerente e sensata diversas críticas à indústria cinematográfica. Tendo vivenciado os bastidores desse moderno meio de produção de entretenimento, belamente maquiado por camadas de glamour, aparências e atuações, o escritor pode perceber o que muitos de nós hoje compreendemos tão bem.
Em suas palavras, acompanhamos a maneira como a juventude de atrizes é utilizada como produto até o surgimento da primeira ruga e, atingindo seu prazo de validade, cabe a elas enfrentar o descarte ou preparar-se para uma vida de esquecimento. Em seus parágrafos, observamos a o esgotamento de talentos e sua subserviência perante uma indústria que lucra milhões, mas que injusta e desproporcionalmente retém lucros nas mãos de poucos nomes masculinos, brancos, héteros e, possivelmente, provenientes de famílias poderosas. Em seus capítulos, encontramos nuances e insinuações dos vícios, abusos, devassidão e caos que percorre os bastidores do cinema, desestruturando mentes que se perdem para a vida, para o público, para o futuro promissor que se estendia diante de seus olhares deslumbrados.
Obviamente, Cemitério de Lunáticos não pretende apresentar-se como uma narrativa de crítica social. Trata-se muito mais de uma divertida, instigante e surpreendente história de mistério, repleta de reviravoltas, confusões e assassinato, remetendo aos mais adoráveis e surpreendentes clássicos do cinema! Nesse sentido, o livro mantém-se fiel aquilo que se propõem, agradando os leitores que amam e defendem sua produção literária, mas também trabalhando como uma encantadora porta de entrada ao universo caótico, surpreendente e crítico do escritor que, com estilo característico e uma diversidade de histórias, marcou para sempre a história da literatura.