Estante Diagonal: Enéias, você vem de dois lançamentos da Darkside Books que compõem o vasto universo da série Brasiliana Steampunk. Agora você está lançando um novo livro, totalmente livre desses personagens que o acompanham há tanto tempo. O que o levou a explorar temas como anjos, demônios e a busca por redenção em Serpentes & Serafins?
Enéias Tavares: Olá, Joice. Como sempre, um prazer voltar ao Estante Diagonal para conversar contigo e com seus leitores. Eu sempre defendi a ideia de que literatura, seja ela mais realista ou fantástica e insólita, compreende muito de autobiografia, senão literal então metafórica. Eu cresci em uma família muito religiosa, com leitura semanal da Bíblia e com discussões constantes sobre fé, moralidade, busca e espiritualidade, temas que ainda não tinham entrado nos meus livros, especialmente nos dois volumes de Brasiliana Steampunk, nos quais a política – em Parthenon Místico – e a história – em Lição de Anatomia – pareciam temas mais presentes, sobretudo ao olhar para o passado do Brasil e reinventar alguns dos principais heróis da nossa tradição literária.
Agora, passado dois anos da pandemia e encarando o fato óbvio de que estamos perdendo o rumo do mundo tanto em aspectos políticos quanto ambientais, me pareceu o momento certo de me voltar para temas como fé e espiritualidade, e nada melhor do que usar a tradição de anjos, demônios e artistas para tratar disso, sob um viés contemporâneo e atual, o que tem sido um desafio mais que frutífero.
Pode nos contar um pouco sobre seu processo criativo ao escrever este romance? Houve momentos de dificuldade ou descobertas inesperadas durante a elaboração da história?
Cada romance é uma aventura diferente, um novo planejamento de escrita. Meu processo sempre envolveu outlines e escaletas, o que me possibilitou escrever meus livros em ordens diversas, às vezes começando pelo final ou pelo meio, de forma um tanto assistemática e nada linear. Com Serpentes & Serafins, me permiti avançar na história ao lado do protagonista, o comerciante de arte Alex Dütres, seguindo de forma linear em sua aventura. Como é um romance de viagens, esse processo fez mais sentido para mim, pois me permitiu progredir temporal e geograficamente na própria jornada do personagem e ir descobrindo alguns dos mistérios da narrativa à medida que a escrita avançava. Em suma, a criação desse livro foi uma viagem de descobertas, com pontos de parada e retorno, e espero que a experiência seja igual para os leitores, pegando a mochila e colocando o pé na estrada.
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O cenário também mudou bastante, antes tínhamos um mundo inventivo com o steampunk recriando cidades como Porto Alegre e São Paulo. Já Serpentes & Serafins é um romance contemporâneo. Existe alguma insegurança na criação desta história?
Insegurança faz parte de todo processo de escrita, mas acredito que o mais desafiador aqui tenha sido a pesquisa e o recorte, tanto de lugares quanto de temas. O livro entrecruza três narrativas – bíblica, científica e mística – com três diferentes cenários, além cidades brasileiras e europeias, como Berlim, na Alemanha, Sintra, em Portugal, e Vicenza, na Itália. Assim, meu cuidado foi tornar esses diferentes cenários e narrativas igualmente atraentes para leitores (ou viajantes) já familiarizados a eles como também proporcionar uma experiência igualmente rica e surpreendente para os estivessem explorando esses cenários ou assuntos pela primeira vez. Por isso busquei algumas inspirações em autores que trabalham o contraste entre cenários e temporalidades em sua ficção, como Dan Brown, Umberto Eco, Anne Rice e Carlos Ruiz Zafón, para citar apenas alguns. Como todo leitor, adoro “livros sobre livros” e “romances sobre cenários mágicos” e busquei explorar todos esses temas em Serpentes & Serafins.
Já que você citou Anne Rice, esse romance é descrito com uma qualidade lírica e sensual, e uma de suas inspirações são as obras da autora estadunidense. Como você define seu estilo de escrita aqui comparado aos seus trabalhos anteriores? Que elementos você considera essenciais para criar essa atmosfera e quais livros de Rice serviram de inspiração?
Anne Rice está em toda a minha ficção. Recentemente tive a oportunidade de traduzir a biografia dela escrita por Katherine Ramsland e essa experiência foi definidora, especialmente por ser um livro que explora como poucos o modo como a obra de Rice está intimamente relacionada à sua vida e vice-versa, e olha que estamos falando aqui de uma autora que vai escrever histórias sobre vampiros, bruxas, anjos e fantasmas. No caso de Serpentes & Serafins, acho que dois romances de Rice serviram de inspiração direta: A Hora das Bruxas e Memnoch. O primeiro apresenta uma narrativa que oscila entre o presente e o passado de forma fluida e inventiva ao passo que o segundo é uma jornada inferno e paraíso adentro, algo que faço em Serpentes & Serafins, mas de forma completamente diferente, usando cenários reais que servem de metáfora para esses reinos etéreos. Mas o caráter sensorial e lírico de que falas é algo que gosto de abordar em toda a minha ficção, como um convite a prestarmos atenção ao corpo e redescobrirmos nossos sentidos.
Sempre adorei poesia e o poder sinestésico e conciso de seu uso de palavras e imagens, algo que fica ainda mais evidente nesse novo livro. Nele, uso menos os adjetivos e as locuções adverbiais que sempre adorei na minha reconstrução do decadentismo do século XIX, sobretudo em personagens como Louison, Sergio, Beatriz e Solfieri, de Parthenon Místico e Lição de Anatomia. Além disso, enquanto narrativa atual, Serpentes & Serafins é um livro mais cinematográfico em algumas passagens, mergulhando em temas muito nossos, dos nossos dias, que envolvem crises espirituais, tecnológicas e afetivas.
Alex Dütres, protagonista de Serpentes & Serafins, é descrito como um personagem solitário em busca de significado. Como você desenvolveu esse personagem e quais desafios ele enfrenta ao longo da narrativa?
Alex é um baú de referências diversas, nascidas de diferentes fontes. Há traumas familiares e religiosos em sua juventude, aprendizados filosóficos e artísticos em sua vida adulta e um espirito inquieto que alimenta sua escolha profissional: um comerciante de arte cético e racional que viaja o mundo barganhando peças antigas e fugindo dos fantasmas que não deseja confrontar. Tudo muda quando no alto dos céus, em um turbulento voo para Berlim, ele é contatado por um anjo chamado Barachiel, uma criatura que o presenteia com visões de um passado distante e enigmas bem atuais. Barachiel prenuncia a chegada da enigmática viúva Joana Strauss, com quem Alex viverá uma relação igualmente intensa e apaixonada, do demônio alquimista Samael e de um verdadeiro juízo final que colocará em xeque toda a experiência de Alex nesse livro – e a dos próprios leitores. Penso nele como um herói imperfeito, acidentado, romântico em seus desejos, mas pragmático e metódico em meio a um mundo no qual o racionalismo parece suplantar a fé e a tecnologia, os milagres de outrora. Alex é um personagem que se sabe habitante do mundo e de suas estradas, um tanto temeroso do que encontrará ao ultrapassar a próxima curva, mas igualmente curioso com o que o destino lhe reserva. E estranhamente, em um livro sobre milagres angélicos, demoníacos e espirituais, é o encontro com Joana que se revelará o grande milagre do livro. Mas não quero estragar nenhuma surpresa das que esperam os leitores.
Alex é um comerciante de arte sacra, um tipo de arte que tem como objetivo promover a fé e a mensagem moral de uma religião. De que forma a arte irá conduzir a trama?
Arte pode sim, Joice, ser usada para promover uma religião, ou uma ideologia ou mesmo uma política de estado. Mas a arte na qual acredito muito mais desafia essas instâncias do que as promove. Um dos mistérios investigados por Alex no livro tem justamente a ver com a arte do escultor do século XVIII Emanuel Illians, um artista de Praga que recriou cenas e heróis bíblicos em diminutas peças de bronze reconhecidas por sua ousadia e detalhamento. Uma dessas peças, Jó em meio ao vendaval, terá grande importância no desenvolvimento da trama. É a partir de Illians que Alex retornará ao poeta original do drama bíblico, usando o personagem Jó como força motriz para sua jornada de descoberta espiritual e confronto moral. Esse é apenas um exemplo de como arte e cultura se entrelaçam no romance, não raro mesclando ficção e realidade, referências verdadeiras e recriações artistas, entre outros enigmas espalhados pelo livro que os leitores poderão se divertir investigando.
Como há um imaginário visual e artístico que perpassa a narrativa, minha coluna no Blog da DarkSide – “Na Estrada com Serpentes & Serafins” – pode servir de convite à jornada do próprio leitor.
Você é professor de literatura clássica e especialista em autores como William Blake e Shakespeare, sendo que deste você traduziu a tragédia Otelo também para a DarkSide. De que forma sua formação e rotina acadêmica influenciou a escrita de Serpentes & Serafins?
Sempre que me perguntam se os papéis de professor e pesquisador não se confundem com a tarefa da escrita ficcional, minha resposta é um enfático “sim”. Muito do que sou como acadêmico e professor se deve ao treinamento de sensibilidade envolvido na leitura e na criação de obras ficcionais. Por outro lado, a universidade nos ensina disciplina de pesquisa, administração de tempo para cumprir prazos, paciência na imersão em um determinado campo de saber, além de uma constante auto avaliação dos “comos” e “porquês” de você fazer as coisas do jeito que você faz. Tudo isso é muito útil para escritores e artistas. Assim, sem dúvida, minha formação acadêmica está presente em todos os meus projetos, e ainda mais nesse novo livro, que acaba bebendo muito de grandes estudiosos como Harold Bloom, Ed René Kivitz, Tomáš Halík e Karen Armstrong, no caso dos estudos bíblicos e literários, Gerald Messadié e Anita Diamant, no caso de romancistas que ficcionalizaram a Bíblia, e de Yuval Noah Harari e Richard Dawkins enquanto divulgadores de ciência. Aos que estão estranhando a presença do último nome – ateísta confesso – como referência para um livro sobre espiritualidade, fé e arte, vejo Dawkins como um grande apaixonado pelo milagre da natureza e da vida neste planeta, e este era um dos grandes motes do demônio Samael. Assim, achei apropriado ter o “Capelão do Diabo” como uma das influências para um anjo caído amante das descobertas científicas.
Você pode contar um pouquinho sobre como surgiu essa parceria com Vassilios Bayiokos, artista responsável pelas artes da obra?
Vassilios Bayiokos foi uma feliz descoberta para esse projeto. Vass é um artista nova-iorquino que passa seus dias reinventando figuras da cultura pop com um estilo igualmente suntuoso e inovador, tendo interesse por quadrinhos, tarot, cultura antiga e cinema, muitas das referências presentes em Serpentes & Serafins. Mas a escolha por ele como artista do livro teve muito a ver com procurarmos um artista que conseguisse fundir pintura digital, simbologia antiga e exuberância visual. Há em suas ilustrações um retorno ao Éden, ao paraíso perdido de outrora, seja ele o prometido pelos mitos antigos ou então os anos de nossa infância, e tê-lo no livro é uma dádiva, uma bênção, por vezes sagrada, por vezes profana, o que acaba apontando para o próprio tema principal do livro: nossa busca por perfeição e comunhão em meio às trevas do corpo e da cultura nesse diminuto planeta.
Por fim, o livro aborda momentos de crise espiritual. O que você espera que os leitores tirem de suas próprias jornadas ao ler sobre a busca de Alex? Qual é a mensagem ou reflexão que você gostaria que os leitores levassem consigo após ler Serpentes & Serafins?
É sempre delicado indicar qualquer mensagem quando o assunto é literatura, sobretudo porque cada leitor encontrará a mensagem que lhe for mais adequada naquele momento. Mas seguindo a metáfora do livro como viagem, como roadmance, quero acreditar que esse romance possibilita alguns trajetos interessantes. Para uns, o livro será uma aventura espiritual. Para outros, um debate fervoroso entre religião e ciência. Para outros, uma busca por fé em meio à arte ou então uma intensa história de amor entre dois seres humanos cercados de milagres, mas que só abrirão os olhos na companhia um do outro. E ainda há aqueles que lerão nele um simples e agradável entretenimento, que é sempre meu objetivo maior ao escrever qualquer história.
Se o livro é um emaranhado de pacotes turísticos possíveis, Joice, o que desejo aos leitores de Serpentes & Serafins é uma viagem memorável, repleta de surpresas, aprendizados e, claro, não destituída de turbulências.
Enéias Tavares é escritor e professor de literatura clássica na UFSM, tendo traduzido Shakespeare em seu mestrado e estudado os livros iluminados de William Blake em seu doutorado. Publicou pela DarkSide Books dois romances de Brasiliana Steampunk, Parthenon Místico e Lição de Anatomia. Seu livro mais recente é Serpentes & Serafins, um roadmance sobre arte, magia e espiritualidade. Mais de sua produção em eneiastavares.com.br.