O ano de 2017 foi um ano maravilhoso para os amantes de minisséries, para os apaixonados por histórias bem construídas e fundamentadas, para os espectadores que, muito mais do que ansiar por belos cenários, figurino acertado e atuações de tirar o folego, esperam também algum tipo de posicionamento político ou crítica social interligado às obras que assistem. Foi em 2017 que o serviço de streaming Netflix adicionou ao catálogo a tocante e perturbadora Alias Grace, mas foi ao longo deste ano, também, que a empresa nos agraciou com Godless, uma minissérie estilo velho oeste que interliga um elenco de peso, narrativa belamente estruturada a um posicionamento crítico fundamentado nos mais importantes debates atuais.

Composta por 7 episódios com duração variável entre 50 minutos e 1 hora e 20, Godless delineia uma trama complexa e ramificada que necessita e emprega muito bem todos os minutos de todos os sete episódios, unificando, assim, suas mais diversas narrativas afim de presentear o espectador com um dos desfechos mais belos, emocionantes e violentos que você poderia imaginar… ou desejar!

O gatilho para o principal direcionamento do seriado baseia-se na traição de Roy Goode, bandido procurado que durante praticamente toda a vida foi protegido, apadrinhado e educado para o crime por Frank Griffin, líder de uma das gangues mais violentas do velho oeste. Após roubar os espólios do último ato de Griffin, Roy despista seus antigos aliados e ressurge desidratado, machucado e desnutrido na pequena cidade de LaBelle. Evitando abordar qualquer detalhe acerca de seu passado, bem como os eventos que o trouxeram até a cidadezinha, ele consegue auxílio de Alice Fletcher, habitante reclusa da comunidade, dona de um rancho e diversos cavalos puro sangue que, em troca de um teto, comida e silêncio, pede ao misterioso homem que auxilie nas atividades e reparos necessários a manutenção do rancho.

A narrativa essencial ao desenvolvimento da série, contudo, não se limita apenas em direcionar um bandido misterioso para um rancho decadente, comandado por uma mulher afastada e julgada pela própria comunidade, mãe de um garoto em fase de amadurecimento. Do mesmo modo, a minissérie não pretende somente demonstrar que Frank Griffin direciona-se para LaBelle afim de vingar-se do antigo protegido, destruindo, ainda, vilarejos e vidas que despontam como obstáculos ao longo de seu caminho. Em meio a estes elementos, personagens e consequências, a narrativa ramifica-se em diversas novas histórias, apresentando ao espectador, bem como aprofundando os detalhes, segredos, dores e pensamentos de personagens específicos que irão protagonizar alguma escolha, ação ou cena crucial para o desfecho da história.

Para arrematar este enredo repleto de ramificações, caraterísticas e complexidades, descobriremos que a pequena e pacata cidade de LaBelle é composta por uma esmagadora maioria feminina. A situação atual da comunidade trata-se de uma decorrência direta de um catastrófico desmoronamento na mina, que acabou matando grande parte da população masculina, uma vez que eram estes homens quem trabalhavam na retirada de minérios afim de garantir o sustento de suas famílias e da própria cidade. Estando completamente sozinhas, as mulheres de LaBelle passam a realizar atividades, assumir cargos e tomar decisões que, até o momento, eram efetivadas somente por membros do sexo masculino e, considerando que muitas delas passaram a vida inteira distantes de qualquer possibilidade de tomada de decisão, observamos as mais variadas reações, direcionamentos e opiniões, além da intrínseca necessidade de unirem-se contra um inimigo comum que não faz a menor ideia de que a pacata cidade é comandada por figuras femininas.

É em meio a esta variedade de elementos, contextos, detalhes e, principalmente, trajetórias de personagens que a trama principal de Godless se fundamenta. Sua narrativa só é capaz de existir a partir do momento em que todas as pequenas, notórias, sutis, emocionantes, curiosas e adoráveis histórias de cada personagem interligam-se. Seu enredo ganha vida somente quando todas aquelas personalidades, opiniões e vivências recebem a chance de demonstrar ao espectador sua força e suas mensagens, possibilitando que este se encante e crie laços com cada personagem, o que transforma a chegada do desfecho, bem como do confronto final, tão relevante e emocionante para o seriado. Contudo, por conta da maneira com que a narrativa se constrói, por necessitar de tempo para aprofundar o passado, sentimentos e características de cada personagem relevante à trama, a minissérie precisa seguir um ritmo lento e, de forma alguma isso é algo ruim, é apenas uma escolha consciente tomada afim de se contar uma boa história.

Muito mais do que demonstrar seu domínio sob a narrativa, Godless também se preocupa em inserir questões atuais ao contexto do velho oeste e, vale ressaltar, faz isso de maneira com que as mesmas questões façam sentido dentro deste universo fictício criado, o qual também se encontra fortemente inspirado em situações da época retratada. Aqui acompanharemos o relacionamento amoroso entre um garoto branco e uma moça negra; observaremos o preconceito lançado sem remorso para uma mulher que ousou casar-se com um membro da comunidade indígena; encontraremos um casal de lésbicas que enfrenta os julgamentos e vergonha típica da época; perceberemos o poder e força feminina, o valor de sua união e como, por meio de aprendizado, perseverança e um pouco de coragem estas mulheres podem defender e comandar uma cidade.

Ainda assim, Godless não se preocupa apenas em delinear uma mensagem de empoderamento feminino, ela trabalha com a crença de que homens precisam ser, a todo momento, fortes, que necessitam desempenhar um papel de protetores, buscando sempre a segurança de sua família ou comunidade. A minissérie demonstra com verdadeira humanidade o lado sensível do sexo masculino, suas dores, seus traumas e a vergonha que sentem quando não são capazes de personificar aquele que a sociedade acredita ser seu papel natural. Deste modo, muito mais do que posicionar-se de forma habilmente integrada a narrativa acerca de diversas questões atuais, o que Godless faz é demonstrar e esmiuçar comportamentos, sentimentos e personalidades humanas, permitindo que o espectador se enxergue em pelo menos um dos personagens da trama.

Embora tenha me estendido ao longo das questões anteriores, não poderia finalizar este texto sem antes destacar o belíssimo trabalho realizado pelo elenco da série. Porém, confesso que o aspecto que realmente marcou minha experiência ao conferir cada episódio desta minissérie foi o visual. Desde as paisagens, as locações, as residências e cidadezinhas, o figurino, a fotografia e posicionamento de câmera até a coloração e atmosfera do seriado, tudo remete ao velho oeste, mas, o que encanta verdadeiramente é o fato de que tudo constrói-se de maneira a parecer real ao espectador. Por este motivo, apesar de destacar o trabalho de cada ator e atriz ligado a este projeto, preciso dizer que todo o meu amor está direcionado ao aspecto visual, tão bem trabalhado ao longo do seriado.

No fim, Godless trata-se de uma série para os amantes de minisséries, mas também se direciona para os apaixonados pelo velho oeste, por narrativas bem construídas e estruturadas. Da mesma forma, sua história pode agradar aqueles espectadores mais exigentes, que cobram por algum tipo de posicionamento e aprofundamento de personagens, porém, também pode encantar por sua fórmula diferenciada, conquistando todo tipo de apaixonado por séries. Assim como tantas outras dicas que já compartilhei por aqui, esta é uma daquelas que conquistou um espaço especial em meu coração e, justamente por isso, gostaria de ver mais pessoas conferindo o seriado!

  • Godless
  • Criado por: Scott Frank
  • Com: Jack O'Connell, Michelle Dockery, Scoot McNairy, Merritt Wever
  • Gênero: Drama, Velho Oeste
  • Duração: 7 episódios – 60 a 80 minutos

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