Ao longo da nossa história monstros disfarçados de seres humanos emergiram com discursos sedutores que prometiam desde a igualdade, para aqueles que pensassem como eles, até a supremacia de sua determinada nação perante as outras. Discursos esses que começavam quase inocentemente, com palavras bonitas, expressando desejos e pensamentos adormecidos de uma parcela da sociedade. Mestres da manipulação e ávidos por poder, esses líderes levaram pessoas boas a se voltarem contra seus vizinhos e até contra suas próprias famílias com a promessa de um futuro próspero. O que eles não falaram, a princípio, foi que toda essa “aurora da civilização” seria pavimentada sobre o mar de sangue daqueles que, ou eram considerados impuros, ou não se encaixavam na massa de manobra.

Claro que tudo isso não existe mais. Não há nenhum tipo de pensamento ou movimento extremista, regime totalitário e líderes fanáticos. Sequer existem pessoas cujo poder de oratória é tão expressivo e contagioso que funciona como um feitiço, levando parte majoritária da população a seguir ordens e ideologias como ovelhas alinhadas para o abate. Certo? Errado! Infelizmente, o fantasma do fascismo, nazismo, comunismo, anarquismo e tantos outros grupos que cometeram atrocidades em nome da igualdade e da democracia está mais vivo do que nunca e pode muito bem bater à sua porta se você ousar esquecer o que a história nos ensinou e se deixar seduzir pelo que prometem como o bem comum.

Aconteceu em 1969 em uma escola norte-americana de ensino médio em Palo Alto, na Califórnia, vindo a inspirar A Onda de Todd Strasser, escrito em 1981, mas só lançado no Brasil neste 2020 pela Galera Record, que dramatiza os acontecimentos de algumas aulas de história ministradas pelo professor Ron Jones mostrando como “o poder da pressão coletiva – que já permeou tantos movimentos históricos e cultos – pode persuadir as pessoas a se juntar a um grupo e a abrir mão de seus direitos individuais no processo, às vezes causando um grande mal aos outros.”

Assim como várias catástrofes da nossa história, a Segunda Guerra Mundial é um objeto de estudo tanto polêmico quanto fascinante e que eu sempre procuro mergulhar. Afinal, precisamos lembrar para nunca esquecer! Já tendo ouvido falar no filme alemão homônimo de 2008 dirigido por Dennis Gansel e querendo assistir à série alemã da Netflix com o mesmo diretor do filme, não hesitei em ler este livro surpreendentemente curto que trata de um tema tão complexo e real quanto o autoritarismo.

Eles estavam estudando a Segunda Guerra Mundial, e o filme que Ben Ross passou para a turma naquele dia era um documentário sobre as atrocidades cometidas pelos nazistas nos campos de concentração. Na sala de aula escura, a turma encarava a tela. Eles viam homens extremamente magros e mulheres tão famintas que pareciam não passar de esqueletos cobertos de pele. Pessoas cujos joelhos eram as partes mais largas de suas pernas.

Em A Onda somos inseridos no meio estudantil e logo vivenciamos o infame experimento idealizado pelo jovem professor de história Ben Ross que, incitado por uma indignação durante uma de suas aulas, visa ensinar seus alunos – e ele mesmo – como foi a ascensão do nazismo na Alemanha e todos os horrores que seguiram ao regime de Hitler; e, acima de tudo, tentar compreender o que os livros de história não mostravam: como a população permitiu que um louco convencê-los a seguir por um caminho tão monstruoso.

No livro, temos um grupo bem diversificado de adolescentes no Colégio Gordon que poderia muito bem compor sua própria turma. Temos Laurie, a garota que é a melhor da classe, popular, editora do jornal da escola A Videira, bonita, loira e namorada do garoto alto e bonito David, volante do time de futebol; a melhor amiga tímida e o melhor amigo capitão do time, o esquisito, o competitivo, os relaxados, os nerds… Todos com os seus próprios problemas, dúvidas, alegrias, paixões e dramas familiares ou escolares formando um grupo comum de jovens e seu professor ousado e cheio de ideias inovadoras de ensino. Como então uma aula pode trilhar um caminho tão sombrio, a ponto de alterar personalidades, fazer de inimigos os amigos de infância, acabar relacionamentos e trazer de volta fantasmas do passado como o antissemitismo?

Percebo agora que cometi um erro. Uma aula de história não é um laboratório de ciência. Não se pode fazer experiências com seres humanos. Em especial com alunos do ensino médio que não tem noção de que fazem parte de um experimento.

Apesar das poucas páginas, o autor é bem-sucedido em sua missão de passar ao leitor um pouco do que foi a alemanha nazista e do quanto aquela ideologia e suas consequentes atrocidades não estão completamente exorcizadas do nosso mundo – por mais que acreditemos ou queiramos que seja verdade. A prática do discurso, aquele bem executado que permite ao ouvinte sentir-se parte de algo mais importante que ele mesmo – e é aí que jaz o cerne da questão – o que é amplamente utilizado por todos os grandes ditadores e manipuladores em geral, é tirar do indivíduo aquilo que lhe é próprio desde o nascimento: seu livre arbítrio. Ao incutir na população que a individualidade é um mal para a sociedade e que o coletivismo, ou o espírito de comunidade acima de qualquer cidadão, é o que faz a espécie evoluir, Hitler, por exemplo, pôde moldar as mentes desde os mais jovens até os mais velhos ao dizer que apenas os mais puros vislumbrariam o melhor que o mundo tinha a lhes oferecer, apenas os alemães que o seguiam poderiam progredir, mas que para isso seria preciso se livrar de todos aqueles que fossem contra ou que se caracterizassem como impuros. Eis a massa de manobra com ares de seita que, infelizmente, não ficou no passado.

Foi isso que o professor Ben tentou, e conseguiu, mostrar aos seus alunos. Muito embora todos tenham sido seduzidos pelo poder e tenham ficado cegos por esse ideal que parecia ser tão belo e correto no princípio. Afinal, o quão errado poderia ser uma pessoa, ou classe, ter disciplina? O quão errado seria alguém por ordem em determinado local, seja de trabalho ou em sua própria casa? O quão errado poderia ser colocarmos a espécie em primeiro lugar ao invés de priorizar uma só pessoa? Sozinhas nenhuma dessas características possuem um selo maléfico ou errôneo, o que as torna um regime autoritário, uma aberração ou monstruosidade, como o fizeram Hitler, Mussolini e Stálin, por exemplo, é justamente a motivação e quem as usa.

Ao idolatrarem o professor, os jovens passaram a aceitar e acatar todos os verbetes por ele proferidos, inicialmente como um jogo, mas logo tomando proporções gigantes que – benéficas no princípio – logo escapou do controle de todos. Ao criarem uma saudação passaram a se destacar e formar um grupo que apenas escolhidos poderiam fazer parte, ao recitarem o mantra “Força através da disciplina! Força através da comunidade! Força através da ação!” como um grito de guerra e ao ilustrarem seu grupo com uma imagem, criaram uma bandeira a ser defendida contra qualquer discordância, expurgando a liberdade de expressão do indivíduo e da imprensa. E, acima de tudo, quando o professor lhes disse e incitou a não ter pensamentos críticos e reflexivos, ele despiu os jovens de tudo aquilo que realmente leva uma espécie ao progresso: a arte de questionar tudo. Mas, sempre permanecem alguns indivíduos que se destacam na Onda e permanecem fiéis a si mesmos, a seus valores e ideais honestos apesar de represálias e ameaças que podem ir de psicológicas à físicas, como Laurie que inicia uma campanha na escola para acordar os envolvidos no movimento e alertar aos demais do perigo que se tornou o experimento de história.

É só que as pessoas não veem o que tem de errado nela. Acham que o movimento torna todos iguais, mas não entendem que ele rouba seu direito de ser independente.

E como no acordar de um pesadelo em plena madrugada, A Onda acaba quando o professor Ben finalmente sai da sua espécie de transe ao ter se colocado numa posição de poder e ter exposto seus alunos à um caminho que quase não teve volta. Infelizmente o livro não apresenta muito do que se sucedeu ao final do experimento. Como as vidas dos envolvidos, visto que foi baseado em um caso real, se seguiu? Todd Strasser com sua escrita coesa e direta faz o leitor se sentir conectado com a história enquanto as páginas passam em uma espécie de frenesi. A linguagem descritiva, porém, simples nos apresenta os acontecimentos, os sentimentos dos envolvidos e toda a odisseia que se segue da forma mais clara possível. Ainda assim o leitor se verá refletindo constantemente, debatendo consigo mesmo e se posicionando acerca dos temas retratados na obra.

Os livros de história, os filmes, aqueles que sobreviveram sempre irão nos mostrar o quão desastroso foi Hitler e seu regime, mas existiram outros tão monstruosos quanto ele e o seu Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães; como também pode voltar a emergir inclusive piores, se não aprendermos a lição porque “todos nós somos responsáveis por nossas próprias ações, e que vocês devem sempre questionar o que fazem, em vez de seguir um líder de olhos fechados, e que, pelo resto de suas vidas, vocês nunca, jamais vão permitir que a vontade de um grupo usurpe seus direitos individuais.”

Em suma, A Onda é um dos melhores livros que li em muito tempo. Um livro necessário que fará você refletir amplamente sobre todas as coisas que foram, as que são e as que poderão vir a ser. Recomendo fortemente que leiam este livro e assistam ao filme homônimo na sequência.

Vocês dizem que aquele período nunca se repetiria, mas veja quão perto chegaram. Fascismo não é algo que aquelas outras pessoas fizeram, ele está bem aqui, em todos nós.

  • The Wave
  • Autor: Todd Strasser
  • Tradução: Paula Di Carvalho
  • Ano: 2020
  • Editora: Galera Record
  • Páginas: 160
  • Amazon

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