Apaixonada por ficção científica que sou, não atravessei ilesa por entre as recomendações, comentários e verdadeiro arrebatamento dos leitores por esse romance epistolar, essa ficção científica romântica, vencedor dos prêmios Nebula, Hugo e Locus que, no peculiar início de 2021, conhecemos por É Assim que se Perde a Guerra do Tempo!
Cartas como viagem no tempo, cartas que viajam no tempo.
Publicado em 2019, o tão comentado This is How You Lose the Time War pouco a pouco despontou nas indicações de leitores espalhados por todos os cantos do tempo e espaço. A obra conquistou seu lugar nas listas de favoritos de criadores de conteúdo literário e, para aguçar ainda mais nossa curiosidade, transformou-se em queridinho daqueles leitores que nunca se conectaram ou encontraram encantamento nos livros de ficção científica.
Com tanto burburinho, comentários positivos e textos entusiasmados, seria impossível e impensável não abordar a publicação. Seria um verdadeiro sacrilégio não ler, refletir e compartilhar uma das histórias que tanto movimentaram a literatura de ficção científica mundial. Afinal, estamos todos em casa ansiando por descobrir novos mundos e personagens, desejando nos distanciar um pouquinho que seja da realidade, e no fundo, essa é também uma das funções dos criadores de conteúdo literário: apresentar aos leitores novos universos para se apreciar!
Intercalando um estilo de narrativa em terceira pessoa com trechos de romance epistolar, É Assim que se Perde a Guerra do Tempo sutilmente nos apresenta às ações, estratégias e escolhas de duas organizações cujos membros transitam entre passado e futuro a fim de garantir as condições ideais para a existência de seu povo… e consequente, aniquilação do concorrente. Conhecemos, reconhecemos e desconhecemos esses mundos, suas culturas e agentes. Sua guerra é clara e precisa como o raiar do sol, é desoladora como a explosão de uma bomba. Enquanto tateamos, perdidos, por entre as desinformações, emboscadas e artimanhas de ambos os lados, compreendemos também a falta de lógica existente na certeza de que uma, e somente uma organização deve prevalecer… ainda que em momento algum nos comprovem o fato de que uma organização precisa perecer para que a segunda exista, viva e prospere.
Por entre os limites ilimitados de saltos temporais, transformação do passado e criação de inusitados futuros, a agente Red descobre uma mensagem, uma carta estratégica e delicadamente abandonada para que encontrasse, lesse e iniciasse um processo de comunicação que supera as barreiras do tempo, espaço, futuros possíveis e passados abandonados. Ao ler a carta de Blue, Red aceita a semente do que viria a crescer e fortalecer-se como um romance entre inimigas, uma verdadeira paixão impossível, um amor entre lados opostos. Desse modo, alterando e norteando os direcionamentos do livro, o amor que floresce entre Blue e Red transforma essa história de ficção científica na contação de uma bela, dramática, surpreendente e peculiar história de amor.
O interessante de É Assim que se Perde a Guerra do Tempo é que, embora classifique-se como uma obra de ficção científica e, em essência, verdadeiramente se enquadre nos conceitos, moldes e preceitos de uma obra de ficção científica, o livro é muito mais uma história de amor e superação de barreiras… além de uma complexa teia de confusão na qual o leitor precisa posicionar-se e alinhar-se a fim de construir sentido em trechos, palavras e capítulos. E com isso, não pretendo sugerir que existam regras restritas e limitantes no universo da criação literária de ficção científica, o que impossibilitaria a narrativa de classificar-se como tal ou mesmo materializar-se como tal. Com isso, reflito apenas que essa é uma publicação diferente, curiosa em suas escolhas narrativas, impecável em seu desfecho e final romanticamente repleto de esperança, mas diferente de tudo o que poderíamos esperar do gênero em que se encaixa.
Nesse sentido, É Assim que se Perde a Guerra do Tempo me surpreendeu e decepcionou na mesma medida. Surpreendeu por renovar os ares do gênero e demonstrar que nele é possível encontrar e comportar todos os tipos de histórias, personagens e mensagens. Fiquei admirada com as reviravoltas finais, o desfecho inesperado, a maneira com que os autores subvertem uma narrativa clássica de Shakespeare – estamos falando de Romeu e Julieta – e permitem que o trágico amor encontre uma esperança!
Me encantei, principalmente, com a escrita intrincada, poética, inusitadamente metafórica e, como muitos leitores destacaram, rebuscada! É um verdadeiro desafio recolher cada mensagem por entre as cartas enviadas por Red e Blue, é gratificante perceber como trechos específicos do texto podem remeter a ações, sentimentos ou mesmo eventos que podem, ou não, ter acontecido. Da mesma forma, é maravilhoso conectar cada frase, parágrafo e capítulo com o desfecho e compreender como o caminho trilhado interliga-se ao nascimento de uma trajetória reversa onde o amor entre duas agentes inimigas pode encontrar oportunidades de esperança.
Apesar dos elogios, por entre os elementos que me encantaram e surpreenderam também encontrei detalhes que me decepcionaram, aspectos que me distanciaram da história e dificultaram o estabelecimento de uma conexão duradoura com a narrativa. Com exceção do desfecho – impecável, maravilhoso e sem defeitos – o livro peca na construção, contextualização e detalhamento de universo. Entendemos a existência de lados opostos que permanecem em guerra, mas não compreendemos como, quando e por quais motivos essa guerra teve início. Poucas informações são oferecidas sobre as ações, estratégias, missões e estrutura dessas duas organizações ou civilizações temporais. Pouquíssimo é abordado sobre o funcionamento dos saltos no tempo, sobre as consequências das alterações temporais, sobre a física e dinâmica que possibilita agentes modificarem a história … por motivos incompreensíveis. Embora em momento algum o livro estabeleça como foco o ato de explicar, detalhar e aprofundar, uma vez que seu objetivo está no estabelecimento da comunicação relacionamento e romance de Red e Blue, é frustrante não compreender o universo em que estamos inseridos.
No fim, É Assim que se Perde a Guerra do Tempo é uma ficção científica romântica, um romance epistolar adorável, um verdadeiro jogo de palavras a ser interpretado, um desafio para muitos leitores e também uma porta de entrada. Dependendo do leitor e de suas bagagens e preferências, de suas histórias e sentimentos, o livro pode classificar-se no time de “amado” ou “odiado”, pode representar uma experiência aconchegante e encantadora ou indiferente e distante. Mas, apesar das infinitas opiniões, comentários, textos e indicações, essa ainda é uma bela história de amor, uma adorável história de luz para um mundo de trevas, uma mensagem de superação e esperança de que as escolhas do passado, presente e futuro podem fazer nascer um mundo novo!
- This is How You Lose the Time War
- Autor: Amal El-Mohtar e Max Gladstone
- Tradução: Natalia Borges Polesso
- Ano: 2021
- Editora: Suma
- Páginas: 189
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