Klara é um androide de companhia, uma Amiga Artificial, produto do avanço científico e tecnológico de uma realidade futura, um mundo em que humanos modificam geneticamente seus sistemas neurais com o intuito de elevar a inteligência e, na mesma medida, sofrem de uma crescente onda de empobrecimento de suas habilidades e competências para duradouras interações sociais. Por motivações peculiares, talvez por inusitados alinhamentos do destino, os circuitos neurais e sistemas computacionais de Klara permitem um nível de observação e análise contextual, uma visão do comportamento e tendências humanas que poucos AA, mesmo os mais recentes modelos disponibilizados no mercado, foram capazes de alcançar. Deste modo, nossa protagonista androide aprende, observa, interpreta e, ao contrário de todas as expectativas, encantadoramente acerta na elaboração de padrões, de motivações e direcionamento de comportamentos que, nem mesmo os objetos de seus exames e julgamentos estão aptos a reconhecer.
Tem um lado nosso que não quer abrir mão disso. O lado que quer seguir acreditando que existe alguma coisa inalcançável dentro de cada um de nós, algo que é único e impossível de transferir.
Klara, enquanto produto de um sistema fundamentado nas leis do comércio e desenvolvimento desenfreado, por vezes irresponsável, da ciência e tecnologia, permanece como mercadoria por entre os limites de uma loja de Amigos Artificiais. É ali que ela efetiva suas primeiras interpretações, tão ingênuas e inocentes, tão repletas de uma esperança mística e uma crença infatigável no Sol. Sua vida baseava-se no posicionamento estratégico em expositores e vitrines da loja, preenchia-se pela entrada e saída de clientes, alinhava-se por meio da despedida de companheiros de loja ou espera por uma criança, jovem ou adolescente para acompanhar. E nestes encontros e desencontros da vida, neste movimento incansável da energia do universo, nesta representação reflexiva das possibilidades do futuro, Klara conhece Josie, uma garota adoecida por procedimentos que compreenderemos somente com a chegada do desfecho, uma garota solitária, corajosa e criativa, uma essência que, ao que a narrativa parece indicar, encontra-se em extinção neste mundo moderno carregado de seres cuja inteligência delineia o distanciamento da humanidade do humano.
Uma vez adquirida como AA de companhia da menina Josie, Klara iniciará nova fase em sua vida artificial, recebendo, encontrando e construindo suas próprias chances de compreender as nuances de um mundo que acompanhou através da fronteira transparente de vitrines por toda a sua vida ficcional. Enquanto acompanha Josie e o que sobrou de sua família, Klara reflete acerca da humanidade intrínseca em cada membro desta sociedade peculiar e encantadoramente degenerada. Na medida em que observa o declínio de Josie, consolida uma esperança e fidelidade que surpreende e assusta leitores humanos pois, tantas e tantas vezes, leitores humanos demonstraram esperança menor do que a expressa por uma criatura fictícia e inumana. E desta maneira, ao acompanhar o cotidiano da família, prezar pela saúde de Josie, firmar novas amizades com vizinhos e parentes distanciados, observar e esconder do leitor muitas de suas interpretações, Klara trilha sua própria linha da vida… e seguimos seus passos por onde os raios de sol a direcionarem.
Klara e o Sol trata-se de uma ficção científica levemente imersa nos contextos e moldes do gênero que, atualmente, compreendemos por ficção científica. Trata-se, talvez, de um romance contemporâneo elaborado por um escritor que, como tantos outros antes e após sua existência, negam redigir parágrafos que – e os céus nos guardem – classifiquem ou assemelhem-se a uma ficção científica. Klara e o Sol é uma narrativa reflexiva e aprofundada em elementos, nuances e comportamentos humanos. É uma história sobre a vida humana, sobre os desafios, conquistas, alegrias, tristezas, trevas e luz que construímos por meio de nossas escolhas enquanto seres individuais – no mais estrito sentido de únicos e indivisíveis -, mas também enquanto seres sociais, pertencentes a uma sociedade cujos sistemas se alinham e permeiam o âmago de nossas pequenas e breves vidas.
Klara e o Sol, através da escrita criativa, por vezes poética e verdadeiramente habilidosa de Kazuo Ishiguro, expressa uma história leve e acessível na mesma medida em que se revela profunda e misteriosa. Curiosamente, a narrativa delineia uma atmosfera que remete, em sonoridade, ambientação e características constitutivas, o percurso trilhado por Não me Abandone Jamais, outra ficção científica não ficção científica do escritor. Embora não ofereça ao leitor qualquer indicação de acompanhar enredos que transcorrem no mesmo universo, prevalece a sensação de que, em algum aspecto essencialmente íntimo, temos diante de nós histórias alinhadas por contextos ficcionais que indicam a existência complementação da realidade ficcional. Não me Abandone Jamais não aborda e nem mesmo debate as mesmas temáticas de Klara e o Sol, aqui encontramos obras distintas, com orientações e reflexões definidas que, peculiarmente, em suas diferenças e formas de expressão linguística, ecoam a vida da outra. Por esse motivo, é maravilhoso pensar na existência conjunta destes universos, na complementação destas realidades ficcionais, no contraste entre a desolação e obscurecimento de personagens com que nos deixa a primeira e na claridade esperançosa que nos acompanha ao longo de toda a segunda, ainda que reconheçamos seu final melancólico.
Confira a resenha de Não me Abandone Jamais
Klara e o Sol não é, nem pretende ser, Não me Abandone Jamais. Do mesmo modo, não pretendo influenciar percepções e pensamentos de leitores afirmando admirar em demasia uma das duas, porém, considerando as formas semelhantes e distintas com que se constroem, não posso deixar de mencionar que, em minha visão viciada e de acordo com minhas análises particulares, a segunda obra apresenta algo que a primeira não foi capaz de alcançar. Klara e o Sol é maravilhosa à sua própria maneira, é encantadora em sua leveza profunda, instigante em seus mistérios desequilibrados, fascinante pela esparsa quantidade de informações que oferece acerca de seu próprio universo. Seu objetivo é, antes de delinear mundos futuros e realidades desoladoras, demonstrar a humanidade que prevalece em cada um de nós. Trata-se de uma história sobre o interior de personagens, observados por olhares exteriores que, por vezes parecem-nos ingênuos e inocentes, por outras, se expressam carregados de uma verdade que esquecemos existir. Essa é uma narrativa onde nada e tudo acontece ao mesmo tempo e o tempo todo. É repleta de emoções e reviravoltas, ainda que nos pareça tranquila e carregada de uma lentidão consideravelmente monótona. Como a vida, quando menos esperamos, se transforma completamente, oferecendo detalhes e segredos que nunca imaginamos desvendar!
A nova história de Kazuo Ishiguro delineia algumas das principais características da escrita do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura. Encontramos aqui uma narrativa delicadamente misteriosa, leve e por vezes confusa, poética em suas próprias confusões de enredo e direcionamentos, encantadora por tudo o que diz e por tudo aquilo que necessitamos interpretar. Klara e o Sol pode não se apresentar como o melhor trabalho de Kazuo Ishiguro, não aos olhares desta leitora pertinente, mas, definitivamente, é uma porta de entrada para seu universo literário, sua peculiar forma de escrita e, para importunar o renomado escritor, para o gênero da ficção científica. É uma leitura para refletir, interpretar e questionar, contendo espaço suficiente para a fundamentação de opiniões e pensamentos diversos, de leitores diversos. É um livro que define elementos, detalhes e nuances específicas de sua narrativa, de sua realidade fictícia, mas também se desvia de pontos cruciais, efetivando trocas com aquele que lê. No fim, talvez Klara e o Sol não passe de uma luminescência cujo brilho nos abandona nostálgicos, melancólicos e recheados de esperança peculiarmente renovada … e talvez isso seja o suficiente para considera-lo um bom livro!
- Klara and the Sun
- Autor: Kazuo Ishiguro
- Tradução: Ana Guadalupe
- Ano: 2021
- Editora: Companhia das Letras
- Páginas: 330
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