Em 14 de agosto de 1954 as gêmeas Desiree e Stella Vignes desapareceram. A pequenina e desconhecida cidade de Mallard, comunidade negra localizada no sul dos Estados Unidos, recebeu abalada a notícia de que as descendentes de membros fundadores, como fumaça se dissiparam no ar. Teorias foram elaboradas, comentários foram compartilhados, histórias acerca de avistamentos destacaram-se entre os principais assuntos do período, mas pouco se especulou acerca dos motivos por trás da fuga ou da possibilidade de um retorno ao lar. Deste modo, os dias se transformaram em semanas, as semanas se transformaram em meses, e, pouco a pouco, apenas a solitária e batalhadora senhora Vignes, a fortaleza desta viúva e matriarca, a sabedoria desta trabalhadora mulher sentiram a movimentação das sombras e o silêncio que invadiu a casa da família despedaçada.
Uma década transcorreu desde o desaparecimento de Desiree e Stella. Vidas se delinearam e interligaram por entre encontros e desencontros, ascensão econômica e social, violência doméstica, surgimento ou desaparecimento de oportunidades baseadas na tonalidade da pele. Do mesmo modo, meninas se transformaram em mulheres, mulheres se transformaram em mães, mães adquiriram contornos de mentirosas ou verdadeiras heroínas presenteadas com segundas chances e, daquela misteriosa e desconhecida cidade, daquela comunidade negra dedicada, desde o nascimento, a clarear a tonalidade de seus descendentes, trajetórias se desvencilharam e interconectaram.
Como eu me transformei em mim e você em você?
Como tudo que se rege pelas leis incompreensíveis da existência, todavia, a realidade de nossas personagens se altera quando, pela avenida de Mallard, Desiree Vignes é avistada em procissão de retorno para casa, carregando em seu colo uma assustada Jude, garotinha que com a simples tonalidade de sua bela e adorável pele escura, confronta contextos e realidades de anos de história comunitária e individual!
Eleita pela National Book Foundation como uma dentre as cinco principais vozes da literatura norte-americana contemporânea, Brit Bennett é uma costureira talentosa de narrativas que se interligam por meio de detalhes, nuances e situações análogas aquelas vivenciadas por leitores reais, por pessoas constituídas de carne, sangue e ossos, por comunidades consolidadas por entre relações familiares, relacionamentos conflituosos, amores carregados de pureza ou duros e sofridos sacrifícios. Suas personagens representam realidades únicas e peculiares a tantas e tantas mulheres, tantos e tantos homens cujas linhas da vida percorrem o curioso direcionamento da atualidade. Suas palavras remetem a contextos históricos genuínos, a desordens e desafios repletos de uma similaridade que, caso ousássemos arriscar, poderíamos enquadrar sua escrita como inspirada nos mais preciosos ensinamentos do realismo literário.
A Metade Perdida, com todas as características de seu encantador estilo indireto livre, sua divisão de foco narrativo por entre, no mínimo, sete diferentes personagens localizados em posições temporais e geográficas específicas, sua maneira habilidosa e arriscada de inserir de corpo e alma literária realidades tão relevantes e necessárias, é uma verdadeira preciosidade. De escrita acessível e reflexiva, por vezes remetendo a adoráveis fluxos de pensamento, A Metade Perdida não se define por grandes reviravoltas, mirabolantes descobertas, intrincados mistérios que se desvendam ao longo de suas 336 páginas e dezessete capítulos. Como maravilhosa obra contemporânea que é, nos convida a acompanhar a realidade desafiante, os conflitos cotidianos, os contextos e nuances de uma sociedade norte-americana construída nas bases do preconceito sistêmico. Para o livro, importa aquilo que aconteceu e acontece com seus personagens, importa a realidade que lhes possibilita a existência, importam as maneiras como seus percursos podem intercruzar-se e interferir das mais inusitadas formas. Esta é uma história sobre gerações que trilharam caminhos específicos, que fizeram suas escolhas e vivem e convivem com as consequências de seus atos.
Encontramos aqui uma narrativa que aborda o preconceito estrutural e sistêmico, que relata as nuances, desafios, traumas, passado e contextos de personagens ricos e pobres, brancos e negros, hétero e homossexuais, transgêneros, privilegiados, covardes ou corajosos, de famílias e familiares presentes ou ausentes, personagens essencialmente humanos. Aqui acompanhamos as transformações no pensamento, visões de mundo, realidades e vivências de gerações que convivem e delineiam novas possibilidades de futuro. Aqui observamos a representatividade trabalhada com cuidado, delicadeza e veracidade, percebendo que, ao garantir a exposição e voz de diversas realidades, Brit Bennett garante, também, a ampliação da conexão dos leitores à história.
Muito além de transmissor de ensinamentos ou lições, de reflexões ou conjecturas acerca de generalizadas vivências humanas, este é um livro sobre trajetórias particulares, peculiares escolhas, consequências que definem toda uma vida. É um livro sobre seres, existências e experiências particulares. É um livro sobre aceitação, sobre construção do mais genuíno sentimento de empatia, sobre o delineamento de histórias livres que quaisquer julgamentos ou suposições. A Metade Perdida trabalha de maneira a evitar qualquer posicionamento ferrenho do leitor, oferece informações a fim de possibilitar que se compreenda, ainda que não se concorde, com a vida e as escolhas de cada personagem. Aqui não se cobram lados, não se defendem mocinhos ou vilões. Com exceção de homens héteros brancos que cometeram assassinato e seguiram suas vidas impunes do crime que cometeram, não encontramos mocinhos ou vilões, encontramos apenas a humanidade de seres humanos em suas trajetórias particulares e aqui se localiza a força do livro!
A Metade Perdida ecoa vozes silenciadas por anos de história humana, expressa realidades ainda pouco abordadas, ainda desconhecidas por muitos, ainda compreendida por poucos. A Metade Perdida é relevante e necessária em toda a sua representatividade, em toda a sua veracidade, em sua maneira de tratar narrativas sem julgamentos. Trata-se de um livro real enquanto materialização de histórias que precisamos conhecer, histórias estas que tanto nos ensinam, que tanto nos permitem confrontar a realidade, que tanto agregam, modificam e ampliam nossas visões de mundo. Trata-se de um livro complexo e, curiosamente, simples.
Um livro que se inicia da mesma maneira com que se finaliza, ainda que o ponto de partida, pouca similaridade tenha com o ponto de chegada. É um livro sobre vivências e todas as escolhas, consequências e nuances que possibilitaram nos transformar naquilo que somos, é um livro sobre a vida de personagens fictícios que, tão encantadora e adoravelmente, poderiam ser reais!
- The Vanishing Half
- Autor: Brit Bennett
- Tradução: Thaís Britto
- Ano: 2021
- Editora: Intrínseca
- Páginas: 336
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