O Beco do Pesadelo – Crítica

21 mar, 2022 Por Clara Vieira

Por ser fã do filme O Labirinto do Fauno, quando vi que seu diretor, Guillermo del Toro, estava lançando uma nova obra cinematográfica, fiquei extremamente animada para assistir este novo filme, intitulado O Beco do Pesadelo. Este sentimento apenas aumentou quando vi que o filme estava sendo indicado para diversas premiações, chegando a concorrer para quatro categorias do Oscar 2022 (Melhor Filme, Melhor Fotografia, Melhor Direção de Arte, Melhor Figurino).

O Beco do Pesadelo é a segunda adaptação cinematográfica do livro de 1946 “O Beco das Ilusões Perdidas” (“Nightmare Alley”, em seu original em inglês), do escritor William Lindsay Gresham. O longa se inicia nos apresentando Stanton Carlisle conhecendo um circo e suas atrações, sendo rapidamente contratado para trabalhar com aquele grupo de pessoas. Stan ascende socialmente de forma rápida, tanto na hierarquia do circo, quanto fora dele, ao aprender com um casal de artistas circenses truques para apresentações de “mentalismo”. Acompanhamos então o protagonista tomando uma série de atitudes visando sua ascensão social através do mentalismo, tecendo com isso uma trama intrincada de mentiras que podem produzir consequências graves em sua vida.

Embora não me sinta qualificada o suficiente para afirmar sobre o merecimento ou não de um prêmio tão grande quanto o Oscar, creio poder afirmar que tanto a fotografia quanto o figurino do filme de fato chamam a atenção em sua composição estética, construindo a história tanto quanto o roteiro. Eles contam, em uma atmosfera sombria, sobre amplas disparidades socioeconômicas, mostrando o abismo social criado entre aqueles que tem acesso fácil a todo luxo e riqueza que poderiam desejar, e aqueles que são excluídos socialmente, passando a ser vistos como menos humanos.

Vale lembrar que o filme se passa em uma época na qual o circo ainda era um local onde as pessoas iam para assistir pessoas que eram consideradas aberrações, de maneira muito parecida com o que poderíamos fazer com animais em um zoológico. A desumanização, portanto, me parece um dos temas centrais desta obra, assim como a existência de disparidades socioeconômicas, sendo ambos os temas muito bem retratados visual e verbalmente.

O que mais me chamou a atenção ao assistir “O Beco do Pesadelo”, no entanto, foi a construção narrativa sobre como a psique do protagonista influencia sua jornada. É claro que este ter sido o foco do meu olhar é algo que se deve a minha própria história de vida, ou seja, à minha graduação em psicologia. Assim, não quero dizer que este é o aspecto principal da história, apenas que, ao focarmos na narrativa acerca do psiquismo do protagonista, podemos perceber todo um universo profundo e cheio de camadas. Com o intuito de abordar de maneira clara algumas das camadas existentes nesta história, vou tratar delas me permitindo falar livremente sobre a narrativa, de forma que daqui em diante meu relato irá conter spoilers

A meu ver, este filme traz a vida psíquica de Stan de forma bastante circular. Ele começa com a morte do pai de Stan e sua ida ao circo. Vemos, nos primeiros minutos do filme, a imagem de uma pessoa que fora despida de sua humanidade, trancada em uma gaiola e privada de comida, tendo que rasgar o pescoço de uma galinha viva com os dentes para conseguir alimento. Em um diálogo de Stan com um dos administradores do circo, descobrimos que aquela “atração circense” era um homem que sofria com o abuso de bebida alcóolica e que fora enganado para achar que havia conseguido um emprego, sendo, em seguida, mantido em condições deploráveis. Essa informação a princípio pode parece desconexa, mas retomaremos ela adiante neste texto. 

Outra das informações que obtemos é que a mãe de Stan o abandonou quando era criança, ao fugir com um outro homem, deixando-o com seu pai, que era alcoolista. Torna-se evidente ao longo do filme o papel central do pai na constituição da vida psíquica de Stanton Carlisle. Ele passa a identificar a figura de seu professor sobre mentalismo com seu pai, devido às semelhanças que encontra: ambos sofrendo com uma adição a álcool, ambos extremamente talentosos e, na visão de Stan, incapazes de levar adiante seus talentos, desprovidos de ambição, conformados com pouco. Stanton, de forma inconsciente ou não, assassina seu professor e assume seu lugar, levando adiante suas descobertas sobre truques relacionados a adivinhação e construindo uma carreira em cima disso.

Stan torna-se famoso, e passa a subornar a psicóloga Lilith Ritter para que ela conte segredos de seus pacientes que facilite a manipulação dos mesmos por Stan. É através de seus diálogos com Lilith que entendemos que Stan construiu sua personalidade a partir do sentido exclusivo de não ser quem o pai foi: é assim que aparece seu orgulho sobre nunca ter tomado álcool, que Lilith tão prontamente percebe. É isso também que acaba constituindo a ruína do personagem principal. Stan passou a ser a pessoa ativa, determinada e com a ambição que o pai não teve, e para garantir o lugar social que a ambição lhe garantiu passou a topar qualquer coisa – suborno, mentiras, enganações, até mesmo assassinato.

Ao enxergar essa sua vulnerabilidade, Lilith consegue enganá-lo e submetê-lo a uma situação na qual ela rouba todo seu dinheiro. Fugitivo procurado pela polícia, Stan se vê em situação de rua e fazendo uso de álcool. É nesse momento em que ele recebe o convite de se juntar a um circo, na figura da fera que fica trancada na gaiola e é obrigada a comer galinhas vivas. O círculo se fecha, e Stan se vê no lugar desumanizado que o pai ocupava, e em relação ao qual ele tentava a todo custo fugir. O filme se inicia com Stan rindo, dizendo que ele havia nascido para aquela função.

Esta situação poderia ser lida de muitas maneiras, e uma das que acho particularmente interessantes parte do conceito da profecia autorrealizável, desenvolvida em um capítulo de mesmo nome do livro “Social Theory and Social Structure”, de Robert K. Merton (ainda não publicado em português). O sociólogo desenvolve uma ideia apresentada por W.I. Thomas, que, por sua vez, a elabora a partir do trabalho de diversos outros pensadores, que afirma que se pessoas definem uma situação como real, então essa situação se torna real em suas consequências. Merton aponta que sentido define as ações humanas; assim, quando partimos de certas premissas, ainda que falsas, atribuindo sentido a elas, agimos tal como se elas fossem verdade, o que determina, por sua vez, as consequências de nossos atos, de forma a, por vezes, fazer com que a premissa inicialmente falsa se concretize. Merton apresenta como exemplo a certeza de um estudante de que irá ser reprovado em uma prova, o que o faz passar mais tempo se preocupando do que estudando. Assim, o que era a princípio uma preocupação sem lastro passa a ter um, a falta de estudo. Isso pode fazer, curiosamente, com que o “profeta” enxergue a situação como se estivesse correto desde o princípio, e o ciclo se reinicie.

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O exemplo de Stanton Carlisle me parece perfeito para explicar a ideia de profecia autorrealizável. Ele tem para si o medo e a repulsa à ideia de se tornar igual ao pai. Passa, então, a fazer de tudo o possível para escapar desta lógica, unindo-se, inclusive, a pessoas que pensam da mesma forma: para Lilith vale de tudo para não ficar submetida às violências do mundo (como exemplificadas por sua cicatriz), incluindo dar golpes nos outros. É assim que Stan toma um golpe, após ter dado tantos, encontrando-se no lugar do pai. É que, como aponta Merton, não basta vontade para sair do ciclo da profecia autorrealizável.

É necessário questionar e abandonar a própria ideia que baseia a profecia para poder sair dela, interromper o ciclo. Assim, não basta querer ser o oposto do pai, porque o pai ainda é a medida. Abandonando a medida que o pai se tornou, tanto a riqueza quanto a pobreza poderiam ser vividas a partir de uma forma própria, de uma escolha pessoal de até onde vale a pena ir por elas. O ideal do pai nunca foi abandonado, no entanto, e Stan se vê, no final do filme, rindo ao perceber que seu maior medo, aquele que parecia mais real, se concretizou. Em sua profecia autorrealizável, ele estava destinado a se tornar o próprio pai, nasceu para isso.

É por ter construído uma crítica social e uma narrativa individual profunda ao redor dela, com uma forma impactante de transmitir essas mensagens visualmente, que acredito que O Beco do Pesadelo é um filme que merece ser visto e apreciado, independentemente de ganhar ou não alguns dos prêmios tão consagrados.

  • Nightmare Alley
  • Lançamento: 2022
  • Com: Bradley Cooper, Cate Blanchett, Toni Collette, Rooney Mara
  • Gênero: Drama, Suspense
  • Direção: Guillermo del Toro

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